quarta-feira, agosto 31, 2005

MERDA

Irritado. Perdendo hora, engolindo o café, o pãozinho e a primeira pílula do dia. Acelerando até o colégio ouvindo música eletrônica. Não estava disposto a cantar nenhum refrão açucarado.

Uma, duas, três... Sete aulas só na manhã. Governo Dutra para a Oitava série, proclamação da República no Segundo, início da colonização brasileira no Primeiro e Revolução Industrial no Terceiro colegial. Cansado. Desejada é a pausa pro cafezinho, fazendo piadas com os colegas e zombando de algum aluno idiota.

Sim, eu zombo dos meus alunos idiotas.

Em casa enrolei com a comida fria. Um calor insuportável, mais do que indecente mesmo para um inverno tropical. Ainda tinha que preparar as aulas da noite, para o Semi-extensivo. Toda a aventura grega, do povoamento até Alexandre Magno, em duas aulas. Cursinho é bacana, pois não tenho que carregar diários de classe e nem que corrigir provas e trabalhos. Ganho mais e, de quebra, tenho algumas alunas gostosinhas.

Só que aquilo não é educação. É resolução de vestibulares.

Pois é. Em casa, antes de começar a trabalhar, resolvi tirar um pequeno cochilo. Coisa rápida, de quarenta minutos, pois tinha que preparar as aulas gregas e me afundar na dissertação. Um calor infernal, já na penumbra, esticadão, e mamãe entra no meu quarto:

- Vamos precisar ir ao banco. Seu plano de saúde vence hoje.

- Inferno! Sério? Hoje? Merda!

Dever de cidadão, falência social. Vou até a sede da Unimed estourando de dor-de-cabeça, suando as bicas e profundamente ofendido em ter que pagar um plano de saúde.

- Que Estado de merda! Que país de merda! Escola particular, saúde particular, vigilância particular... Onde é que assino o atestado de falência humana?

- Tenha calma, filho. Você ta falando muito palavrão.

Estaciono perto da sede em uma boa vaga. Ao Sol. Mamãe vai me esperar na casa da minha vó, já que aquilo poderia demorar. Um sétimo do meu salário custa uma cobertura médica básica, sem nenhuma regalia, sem nenhuma frescura. Limite de consultas, quarto coletivo e hospital verde com tons pastéis. Merda de classe média, sempre buscando suavizar o estupro.

- Por favor, onde é a agência do Unibanco que fica aqui no hospital?

- É na casa ao lado, senhor.

(Senhor o caralho! Todas aquelas loiras falsas, de tailleur verde, maquiadas, com sorrisos de ar-condicionado. E eu ensinando o que foi a Balaiada.)

Agência pequena. Já estive lá uma dezena de vezes pagando meu direito de uma morte limpa e nunca tinha reparado no quadro com as taxas bancárias. Tinha um rapaz na minha frente e, querendo disfarçar minha irritação, resolvi ler o quadro. Merda! Pagamos taxas sobre tudo, boletos bancários, extratos, atendimento, movimentação: tudo é taxado! Filhos da puta... Meu salário de merda já é solapado na fonte e ainda tenho que carregar uma máfia nas costas!

- Boa tarde. Em que posso ajudar o senhor?

(Mocinha gostosa. Morena de cabelos lisos. Só que o tailleur e o sorriso de ar-condicionado também estavam lá. Mas que estética infeliz é esta?)

- Pois é... Vim pagar o meu plano de saúde.

- Hum... O senhor trabalha na Unimed?

- Não!?!

- Então não posso realizar a operação. A partir deste mês só vamos trabalhar com os funcionários da empresa.

- Ah... Não é possível! Você sabe o quanto o trabalhei hoje? E sem ar-condicionado, mocinha. Eu estou querendo pagar este estelionato de merda, vê se aceita que a minha vontade é cancelar esta porra!

- Calma senhor! Eu não sou responsável por esta mudança, sou apenas uma funcionária!!!

(Sim... A célebre desculpa. Lembrei das minhas aulas de Revolução Francesa e desejei, no íntimo, reeditar um período de Terror.)

- Pois é. Desculpe... Mas aceite a ordem de pagamento! Sempre paguei aqui e estava esperando, você viu. Não sabia desta mudança!

- Está bem. Mas não tente conseguir nada mais no grito.

Grito? A mocinha não me viu gritando. Gostosinha com aliança prateada na mão. Devia ganhar o dobro do meu salário pra tirar dinheiro dos outros. E devia ter sexo com seu garotão todo final de semana.

Voltei pro carro, encontrando mamãe. Dois motoqueiros cretinos praticamente fecharam o meu carro. Uns cinco minutos fazendo manobra. Sol na cabeça e um motorista estúpido buzinou, avançando para atrapalhar minha saída.

Segunda marcha. Casa.

- Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda!

- Filho, não fique tão irritado... Calma. Não precisa xingar tanto!

- Minha santa mãe, por favor. Ganho uma miséria para tentar ensinar alguma coisa para um bando de idiotas, pago um plano de saúde que em qualquer lugar justo deveria ser considerado um crime, a merda do meu partido se auto-implodiu e nem me lembro da última vez que ouvi "eu te amo". Neste sentido, xingar é muito mais do que qualquer benção, teoria ou sentimento puro!

quarta-feira, agosto 24, 2005

"Adeus" com um misto de "desculpa"

Vamos começar com um mea-culpa: semanas sem postar coisas novas! Não é mole! Acontece que, nestes tempos tão bicudos, resolvi adotar uma postura reservada, ou no linguajar fresquíssimo, desconfiado. É bom desconfiar de tudo.

São tempos bicudos.

O ponto é que penso no blog todos os dias. Geralmente no início da noite, quando me banho. Não sei bem qual é a relação, nu, com água e espuma, pensando no blog. Se ele estivesse inclinado aos temas eróticos – que sempre foi meu desejo – seria fácil entender. Mas não. Penso em postar poesias (minhas e outras, roubadas), postar crônicas (minhas e outras, roubadas) e textos gerais (aí nem Deus sabe!).

Mas não.

Oquei. Tenho novidades. Estou com mais seis aulas, numa escola / cursinho. Mais cursinho do que escola. O novo é que estou ganhando um pouco mais, trabalhando um pouco mais, cansando um pouco mais. O bom é que estou pegando o jeito, ao menos sinto, e estudando cada vez mais. Gosto de História, Filosofia e outras áreas das Humanidades. Só não sei bem se consigo ser um bom historiador.

Outra coisa. Consegui um tempo pra terminar o mestrado. Na verdade, foi o Norberto. Já coloquei aqui que amo o meu orientador? Pois é... Ele arrancou mais uns meses da USP, mas colocou sua condição: uma vez por mês tenho que bater cartão em São Paulo pra mostrar serviço. Legal é que as reuniões não serão na universidade, mas sim em sua casa, com direito ao almoço e mundaréu de filhos.

Tem mais.

O PT. É a angústia do dia?

Pois bem, cansei de ficar no constrangimento. E aqui vai um recado direto pra quem quiser tomá-lo como tal: é muito fácil passar a vida sem nunca embarcar em nenhuma militância, sem tomar nenhum gosto pelas discussões públicas e políticas. Acontece que este não é o caminho que estou. Nem sei quando começou, mas sempre gostei de política, de pensar processos, de debater. Ou seja, não abandonei o projeto petista, genuíno, inovador. Não este que está aí na presidência, recheando cuecas.

Assim fica fácil? Oras, devemos ter a grandeza de entender que as idéias são maiores, e mais valiosas, que os homens. O PT não é Zé Dirceu, assim como as alternativas de esquerda para o Brasil não são o PT. Resolvido isto, tenho outros pensamentos. Paul Singer, István Mészáros, Fernando Haddad, Marilena Chauí, Milton Temer, Plínio de Arruda Sampaio e Fábio Konder Comparato. Agrupei uma pequena bibliografia, livros, artigos e entrevistas, quase toda lida e fichada. Quero escrever, nem que seja uma linha, sobre tudo isto. Escrever pra mim, não para os outros; preciso entender isto tudo e conseguir refletir alguma coisa. O que está acontecendo no cenário político brasileiro é algo muito forte e exige cautela. É o momento de muita reflexão e ação. Tenho lá minhas idéias fixas, e estudar história para as aulas está ajudando muito nisto.

O ponto, ou melhor, o ponto de flexão do Brasil moderno, ao meu ver, está na delicada relação entre o passado colonial e a burguesia brasileira*. PT e PSDB estão intrincados nisto, já que ambos os partidos iniciaram um processo de “aburguesamento” de nossas instituições, antes interrompido pelo golpe militar de 1964. Agora tenho pensado no que deu errado. Talvez a adoção de modelos. Os tucanos prometeram transformar o Brasil em um Chile, inaugurando nossa entrada no mundo desenvolvido e na civilização do capital. Não dá, aqui não teve Allende. Teve FHC comendo buchada de bode durante sua primeira campanha. Ainda teve todo o processo das privatizações, que também mereceria atenção de investigações. Do lado petista majoritário, a adoção do modelo PRI mexicano é inegável. Só que ele também esqueceu que aqui é... Brasil!

E tome novela das seis!!!!

Por fim, quero dizer que estou lendo e ouvindo muito. Não vou fazer uma lista, que seria pedantismo torto. Também ando saindo sozinho. Gosto de dirigir de madrugada e das luzes tingindo o escuro que me lembram São Paulo. Buscando sexo e bebendo cerveja. Quase sempre pensando em alguma moça.

Como se vê, minha vida têm se limitado a dizer “adeus” com um misto de “desculpa”.


* Por isso tenho comigo que o próximo texto deve ser “A Revolução Burguesa no Brasil”, de Florestan Fernandes.

segunda-feira, agosto 08, 2005

Enquanto escuto Gonzagão

Segunda-feira de espremer cérebro. Não sei bem como estou pensando no blog. Hoje é dia de assistir o Linha de Passe e dormir pesado, gostoso. Dormir sem espaço para sonhos e nem pensamentos marotos. Pensamentos tolos, na maioria.

Tarde toda em frente do computador, esta é a minha rotina faz quanto tempo? Nem sei. Hoje fiquei escutando Luiz Gonzaga, o maior compositor de música popular que este país pariu. Bom escutar o velho sanfoneiro, pois ando pensando em esquecer que sou brasileiro.

Como se isto fosse possível.

Na sexta-feira teve reunião no colégio. O patrão fez uma macarronada e bebi muito. Cerveja gratuita, é sempre bom aproveitar. Acabo reforçando a fama de cachaceiro que peguei por lá, e entre adolescentes esta é uma boa fama. A reunião pedagógica foi pautada pelo mesmo clima de intimidação que rege todas as escolas particulares deste país. Recebi uma “lembrança” da secretária pedagógica, uma velha senhora, diretora de escola pública aposentada, que vive para cuidar da burocracia educacional. Ela quer vistoriar meus diários de classe e prometi levar nesta terça.

Não deu tempo de mexer com eles hoje. Fica pra quarta-feira.

Cabeça latejando. Amanhã tenho que falar da Segunda Guerra Mundial, das invasões estrangeiras no Brasil, do neocolonialismo do século XIX, do Renascimento Cultural e Reformas Religiosas. Chegando em casa, judeus do século I.

E, quando dá tempo, literatura. Se pudesse, ficava só com ela.

(Eis um pensamento constante que devo voltar em outro texto: diante do assombramento de nossa falência política, moral e afetiva, tenho aceitado que só nos restaram as bebidas alcoólicas, a música de entretenimento, a baixa gastronomia, a sub-literatura e o sexo. A idéia não é minha, nem nova, nem fácil, mas cada vez mais acredito que vivemos numa civilização pré-capitalista.)

Resolvi arrumar um pouco minha mesa, atolado de papéis e livros, muitos inúteis. Encontrei o rascunho de uma carta que eu estava escrevendo para a Cristiane. Lembrei que, há pouco, eu estava apaixonado. O que acontece? Mais três anos no stand-bye? Bem, na cartinha que não deu tempo de ser entregue, encontrei um texto da Clarice Lispector. Peguei na Folha de São Paulo, que alardeou como um inédito da escritora. Deixei gravado na mensagem do celular dela também, mas nunca soube se ela escutou minha leitura. Apropriado naquela carta, na voz digital, apropriado nesta noite mansa.

Apropriando sempre.


Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.


(Clarice Lispector)

quarta-feira, agosto 03, 2005

Tudo mais que existe


Saio sem alarde
Sei que já vou tarde
Não tenho pressa
Nada a me esperar
Nenhuma novidade
As ruas da cidade
O mesmo velho mar
Agridoce
Pato Fu


Desculpe por tudo e por não telefonar. Desculpe também por não falar muito quando você me procura. Apenas desculpe.

Muita coisa anda mal. Mal de verdade. Mas você nunca me ouviu reclamar de assuntos específicos, só de sentimentos e sensações gerais. Nunca quis entupir você com meus problemas, não mesmo. Acontece que acabei me tornando um deles.

Pelo menos isto.

Estou desesperado. É o máximo de fragilidade que você vai arrancar de mim. Coisas que eu acreditava, sofria e amava, muitas coisinhas que significam em minha vida, faliram ou estão correndo perigo de acabar. Daí eu não sei o que fazer.

Não é só você.

O que era sonho ficou sonho. Agora se desfez. Faltou empenho, faltou gana, faltou realização. Talvez tenha até faltado sorte. Sobrou é sonho, imundice abstrata.

Perdi a ternura e o gosto fraterno de querer um pouco mais, sempre mais. Antes eu pensava que alguém os tivessem roubado, mas não. Deixei eles irem e fiquei parado, no sonho, nos planos. E, claro, nada aconteceu.

Só os cabelos que começaram a cair.

Patético. E eu não sei o que fazer. Tudo o que eu falo pra você é desarmado. Fico comigo em pânico enquanto você acha a situação engraçada. Patética a minha dor, o meu luto e reclusão. Paralisia besta e você só consegue rir.

(Juro que gostaria fazer as coisas diferentes. Juro que gostaria de conversar como se não houvesse constrangimento. Juro que gostaria de passar na rua de sua casa sem procurar o seu carro. Juro que gostaria de sair para beber alguma coisa contigo. Caipirinha de saquê.)

Hoje não tem Bidê ou Balde, não tem rock pop e nem Chico Buarque. Não tem Pedro Juan Gutiérrez, maçã verde e sorvete de flocos. Vou desligar a TV, o som, o PC, o celular, o rádio-relógio, a luminária e o motor do carro. Fechar as janelas, esquecendo da luz, do dia e dos livros de poesia. Deixar de tudo mais que existe pra me encerrar no silêncio. Dormir em silêncio. Sonhar com silêncio.

Silêncio.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Grandes comparsas

Sábado teve um show do Ludov num bar bacana aqui do sertão. Bar Kenoma, em Rio Claro. Cerveja barata e Coca-Cola naquelas garrafinhas de vidro, clássicas. Legal! Convoquei meus dois melhores amigos e fomos. Acho que eles não gostaram muito, mas eu adorei estar ali: nós três, cervejinha e Ludov.

Tinha um aquário grande e iluminado na entrada do bar.

Gostei. Começou o show e fui para frente do palco. Fiquei bem perto da banda, menos de um metro. E como o palco era baixo, praticamente estava ao lado da Vanessa Krongold. A guria estava lindíssima, num visual meio retrô, meio anos trinta. Saia cinza escura e uma blusa preta. Linda e sorridente.

Cantei todas as músicas. Esqueci que estava lá, de me localizar no tempo e espaço. Simplesmente desliguei e fiquei assistindo o quinteto tocando. Sentindo. Cantei alto e, em algumas músicas, cheguei bem perto de chorar. Mas não. E me senti pleno em estar presente ali.

Depois ficamos um bom tempo de papo pro ar. Gosto da intimidade que nós três conquistamos, essas coisas que só o tempo e muitas experiências conjuntas conseguem fortalecer. Muitas piadas e risos de quase tudo.

Conversamos sobre sexo, noitadas, música, mulheres, amores e futuro, tudo isto na informalidade profunda e natural dos grandes comparsas. Estranho, pois acabei sentindo uma forte emoção dupla: era bom e ruim experimentar isto com eles. Era bom, pois sempre é reconfortante saber que não estamos sozinhos, saber que toda esta confusão que tira o meu sono também está com meus amigos, o que torna a dor mais humana, mais compartilhada. A gente pode conversar sobre ela. Era ruim, já que acho uma tremenda injustiça ver pessoas como eles confusos e angustiados. Parece que os bons estão sendo penalizados nestes tempos modernos. Na saída comprei uma camiseta bacana da banda e fiquei olhando, por um bom tempo, pra Vanessa. Ela estava sentada, sozinha. Queria conversar e perguntar se ela acredita em amor ao primeiro show.

Ou no primeiro olhar.

Voltamos pra casa. Vim dirigindo. Leandro desmaiou no carro, rock nacional, pista vazia. Giusti e eu ficamos conversando sobre coisas da solidão. Pensei no quanto seria valioso estar com ela por lá para mostrar algumas músicas que me fazem lembrar de nós. Censurei a idéia. Isto não seria possível mais e, além disto, estava bem ali com meus amigos. Paramos para comer hambúrgueres e deixei cada um na porta de casa. Que bom seria se isto pudesse acontecer todo final de semana!

E sobe o som.