A CIVILIZAÇÃO DA BARBÁRIE
(Recebi este texto do Veríssimo por email. Presente da minha irmã carioca Paula Argolô. Muito apropriado ao momento e aos meus olhos.)
Bárbaros
LFV
As civilizações costumam ter problemas com seus limites. Sempre há uma questão na fronteira, uma civilização diferente e portanto perigosa, ou um bárbaro sujo. Sempre há um bárbaro do outro lado, um autêntico marginal. Sempre há um marginal. Contam que o Papa Leo, para salvar Roma, concordou em ir ao acampamento de Átila, o rei dos Hunos, o Flagelo de Deus, o sujo, e pedir clemência. Pois os marginais nem sempre respeitam as margens e esse sujo rompera os limites do santo império romano e ameaçava um dos seus dois corações. Apesar da idade e do cansaço com a longa viagem o Santo Padre concentra toda a sua santidade num pedido a Deus para que o levite, a fim de que ele possa vencer a faixa de lama e esterco que separa sua liteira da boca da tenda de couro sem sacrificar sua dignidade, ou pelo menos suas sapatilhas. Mas Deus não o ouve e o Papa desliza para dentro da tenda onde Átila, que rói o que parece ser um fêmur humano, o recebe com uma salva de gases.
- Átila...
- Eu prefiro Flagelo.
- Flagelo, este é um encontro histórico. Você sabe o que é a História?
- Sei. Um monte de estrume. O que sobra da experiência depois que nós a digerimos. Lixo.
- Gosto do seu latim.
O huno mostra o fêmur seboso que acabou de limpar com os dentes.
- Preparei-me para o nosso encontro comendo um dos seus escolásticos. Ruct!
- O que foi isso?
- Um arroto. Estranho não ter saído em latim. Mas, nas suas erupções, todos os homens falam a mesma língua. As conferências de paz deviam ser entre os mais mal-educados de cada nação. Talvez seja por isso que nunca dão certo: sempre mandam os diplomatas. Mas você falava da História.
- Este encontro ficará nos anais da nossa História.
- Os hunos não têm anais. Não têm nem um alfabeto. Nossa História é o que contam os nossos velhos, e cada um mente mais do que o outro, para disfarçar o esquecimento. Entre os hunos, só os cavalos sabem escrever. Nossa História está nos seus rastros, no que eles deixam para trás. Lixo. (...)
Esqueletos, ruínas, mulheres estupradas e gado carneado. Isso quando não estupramos o gado e carneamos as mulheres. Este seu perfume...
- Extrato das glicínias de Roma.
- Ah, Roma.
- Você já a viu?
- De longe. Suspensa no ar. Uma miragem.
- A Rainha das Colinas...
- A Eterna...
- Toda a História do mundo numa cidade só. Todas as cidades numa cidade só...
- Breve a pilharemos. Com a devida reverência.
- Você não pode falar sério! Por trás desse exterior rude e dessas peles nodosas tem que haver um homem bom e razoável, com sentimentos nobres e um coração altivo.
- Um romano, você quer dizer. Sinto decepcioná-lo, Vossa Redolência, mas não há. Pelo menos não havia, da última vez que tomei banho.
- Roma não é um lugar. Roma é uma idéia, um parâmetro, um sonho, um triunfo do espírito. Roma é a memória e o futuro da humanidade!
- Prometemos só roubar o que tiver valor material. A literatura fica.
- Átila...
- Flagelo.
- Flagelo, poupe Roma. Me ofereço em seu lugar. Fique comigo e deixe Roma!
- Obrigado, eu já comi. E Vossa Fragrância me surpreende, fazendo apelos à consciência de um bárbaro. Eu não tenho consciência. Eu sou tudo que Roma não é. Se Roma é uma conquista da razão, foi essa inconsciência que ela conquistou.
E Átila bate no próprio peito, fazendo saltar outro arroto.
- Me atribuir uma consciência, Vossa Untuosidade - continua Átila - é diminuir a glória de Roma. Roma só é grande em contraste com seus inferiores. A não ser...
E Átila cutuca o Papa com a ponta do fêmur, convidando-o para uma cumplicidade de sujos.
- A não ser que vocês reconheçam que não são muito diferentes de nós. Hein? Hein? Por trás desse exterior bem lavado e desses panos bordados tem que haver um Átila adormecido. Vocês, apesar do extrato de glicínias, também não são flor que se cheire. Admita isso e eu admito ter uma consciência. Troco uma boa consciência por uma má.
- Não negamos nossa História.
- Negam, negam. Seus anais mentem mais do que os nossos velhos. Vocês civilizaram meio mundo a patadas, como nós. Só que nós não chamamos de civilização. Chamamos pelo seu nome exato. Talvez seja a vantagem de não ter uma escrita...
- Nos regeneremos! Hoje somos um império cristão.
- Isso depois de passar trezentos anos perseguindo os cristãos e atirando-os aos leões. Sempre suspeitei que os leões se enojaram primeiro.
- Está bem! Reconheço a nossa má consciência. Agora reconheça a sua boa.
- Feito!
- O quê?
- Concordo
- Você poupará Roma?
- Claro que não.
- Mas...
- Vossa Ungüência, vocês levaram trezentos anos para se converter e querem que eu me converta em três minutos? Dêem-nos tempo. Ainda temos uns bons cem anos de pilhagem pela frente até termos o bastante para nos tornarmos civilizados, talvez até cristãos.
- Seu, seu...
- Pode dizer. Bárbaro. Tenho a pele grossa, sem falar nos cascões de sujeira. Ruct! Epa. O seu gramático não me fez bem. Volte para Roma e diga que eu sou pior do que ela pensa, mais sujo, o que só aumentará sua virtude. E que ela não se preocupe: sempre haverá um bárbaro rondando as suas fronteiras para sua maior glória e indignação. Sempre há.
Bárbaros
LFV
As civilizações costumam ter problemas com seus limites. Sempre há uma questão na fronteira, uma civilização diferente e portanto perigosa, ou um bárbaro sujo. Sempre há um bárbaro do outro lado, um autêntico marginal. Sempre há um marginal. Contam que o Papa Leo, para salvar Roma, concordou em ir ao acampamento de Átila, o rei dos Hunos, o Flagelo de Deus, o sujo, e pedir clemência. Pois os marginais nem sempre respeitam as margens e esse sujo rompera os limites do santo império romano e ameaçava um dos seus dois corações. Apesar da idade e do cansaço com a longa viagem o Santo Padre concentra toda a sua santidade num pedido a Deus para que o levite, a fim de que ele possa vencer a faixa de lama e esterco que separa sua liteira da boca da tenda de couro sem sacrificar sua dignidade, ou pelo menos suas sapatilhas. Mas Deus não o ouve e o Papa desliza para dentro da tenda onde Átila, que rói o que parece ser um fêmur humano, o recebe com uma salva de gases.
- Átila...
- Eu prefiro Flagelo.
- Flagelo, este é um encontro histórico. Você sabe o que é a História?
- Sei. Um monte de estrume. O que sobra da experiência depois que nós a digerimos. Lixo.
- Gosto do seu latim.
O huno mostra o fêmur seboso que acabou de limpar com os dentes.
- Preparei-me para o nosso encontro comendo um dos seus escolásticos. Ruct!
- O que foi isso?
- Um arroto. Estranho não ter saído em latim. Mas, nas suas erupções, todos os homens falam a mesma língua. As conferências de paz deviam ser entre os mais mal-educados de cada nação. Talvez seja por isso que nunca dão certo: sempre mandam os diplomatas. Mas você falava da História.
- Este encontro ficará nos anais da nossa História.
- Os hunos não têm anais. Não têm nem um alfabeto. Nossa História é o que contam os nossos velhos, e cada um mente mais do que o outro, para disfarçar o esquecimento. Entre os hunos, só os cavalos sabem escrever. Nossa História está nos seus rastros, no que eles deixam para trás. Lixo. (...)
Esqueletos, ruínas, mulheres estupradas e gado carneado. Isso quando não estupramos o gado e carneamos as mulheres. Este seu perfume...
- Extrato das glicínias de Roma.
- Ah, Roma.
- Você já a viu?
- De longe. Suspensa no ar. Uma miragem.
- A Rainha das Colinas...
- A Eterna...
- Toda a História do mundo numa cidade só. Todas as cidades numa cidade só...
- Breve a pilharemos. Com a devida reverência.
- Você não pode falar sério! Por trás desse exterior rude e dessas peles nodosas tem que haver um homem bom e razoável, com sentimentos nobres e um coração altivo.
- Um romano, você quer dizer. Sinto decepcioná-lo, Vossa Redolência, mas não há. Pelo menos não havia, da última vez que tomei banho.
- Roma não é um lugar. Roma é uma idéia, um parâmetro, um sonho, um triunfo do espírito. Roma é a memória e o futuro da humanidade!
- Prometemos só roubar o que tiver valor material. A literatura fica.
- Átila...
- Flagelo.
- Flagelo, poupe Roma. Me ofereço em seu lugar. Fique comigo e deixe Roma!
- Obrigado, eu já comi. E Vossa Fragrância me surpreende, fazendo apelos à consciência de um bárbaro. Eu não tenho consciência. Eu sou tudo que Roma não é. Se Roma é uma conquista da razão, foi essa inconsciência que ela conquistou.
E Átila bate no próprio peito, fazendo saltar outro arroto.
- Me atribuir uma consciência, Vossa Untuosidade - continua Átila - é diminuir a glória de Roma. Roma só é grande em contraste com seus inferiores. A não ser...
E Átila cutuca o Papa com a ponta do fêmur, convidando-o para uma cumplicidade de sujos.
- A não ser que vocês reconheçam que não são muito diferentes de nós. Hein? Hein? Por trás desse exterior bem lavado e desses panos bordados tem que haver um Átila adormecido. Vocês, apesar do extrato de glicínias, também não são flor que se cheire. Admita isso e eu admito ter uma consciência. Troco uma boa consciência por uma má.
- Não negamos nossa História.
- Negam, negam. Seus anais mentem mais do que os nossos velhos. Vocês civilizaram meio mundo a patadas, como nós. Só que nós não chamamos de civilização. Chamamos pelo seu nome exato. Talvez seja a vantagem de não ter uma escrita...
- Nos regeneremos! Hoje somos um império cristão.
- Isso depois de passar trezentos anos perseguindo os cristãos e atirando-os aos leões. Sempre suspeitei que os leões se enojaram primeiro.
- Está bem! Reconheço a nossa má consciência. Agora reconheça a sua boa.
- Feito!
- O quê?
- Concordo
- Você poupará Roma?
- Claro que não.
- Mas...
- Vossa Ungüência, vocês levaram trezentos anos para se converter e querem que eu me converta em três minutos? Dêem-nos tempo. Ainda temos uns bons cem anos de pilhagem pela frente até termos o bastante para nos tornarmos civilizados, talvez até cristãos.
- Seu, seu...
- Pode dizer. Bárbaro. Tenho a pele grossa, sem falar nos cascões de sujeira. Ruct! Epa. O seu gramático não me fez bem. Volte para Roma e diga que eu sou pior do que ela pensa, mais sujo, o que só aumentará sua virtude. E que ela não se preocupe: sempre haverá um bárbaro rondando as suas fronteiras para sua maior glória e indignação. Sempre há.
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