sábado, julho 17, 2004

QUASE LINDO

(Da célebre série “Textos recolhidos pelo arqueólogo da cidade grande”)

Parei na Bela Paulista e estou bebendo uma cerveja. Bohemia de trigo, é claro! E em cada golada fico pensando o quanto amo esta cidade e como está difícil ficar longe. Ainda é cedo, um pouco mais das cinco da tarde. Antes de pintar no apartamento do Luisão vou pedir uma salada de frutas e um café. Estou cansado, é melhor me cuidar.

No ônibus, durante a viagem, tive que fazer força para não ceder ao medo, pois estou tão longe deste ambiente que quanto volto sinto um estranhamento em tudo e em todos. Na verdade eu é que me sinto desterrado, e não a cidade que me impressiona. Tem também a lembrança de uma ex-namorada que eu sempre desejei trazer pra cá, levar ela no Bexiga, na Benedito e no Mercado, pra comer quitutes árabes. Ela respondia que odiava São Paulo. Terminou comigo e mudou pra Capital, esquecendo sua repulsa. Pois é: voltei para o interior e ela veio, de mala e cuia.

(Mais uma garrafa chegou. Uma espiada no pessoal. Muitos solitários engravatados mastigando sanduíches.)

Acabei de ler o Animal Tropical, de Pedro Juan Gutiérrez. Sempre é assim, quando termino de ler um autor, passo por um período de luto, flutuando a cabeça e sentindo sua falta. Sentia-me bem com seus livros, tão sexualmente provocado, tão capaz, tão viril. Agora virei a última página e estou buscando uma outra paixão de letras, afoito e interessado.

No início da tarde tive uma reunião densa com meu orientador. Estamos lendo juntos página por página da minha dissertação, com ele discutindo e opinando em tudo. Muito positivo, pois estou aprendendo bastante, mas isto me cansa horrores e estou com a cabeça pesada de tanto responder e pensar. Também é difícil ficar indiferente quando uma pessoa mais erudita vai nas feridas de sua teoria. O que posso dizer é que, no final, o Norberto confia e gosta muito mais do meu trabalho do que eu.

Na verdade venho pensando um bocado sobre minha vida. Tendo a aceitar que tudo acontece como um rascunho, repetindo a mesma palavra: quase. Minha pesquisa quase produziu um bom texto, como também eu quase fui um bom namorado. Quase, faltou pouco. Quase lindo, quase magro, quase bêbado, quase feliz. Fico num hiato, suspenso.

(Outro gole. Estão filmando alguma coisa aqui. O diretor fica gritando e as luzes estão me torrando a cabeça. Se eu tivesse coragem soltava um palavrão bem alto. Estou irritado.)

O engraçado e contraditório é que na mesma medida que voltei a me reconhecer e gostar de mim, sinto que não estou pronto para o mundo, sempre numa posição inferior aos homens e mulheres que conheço. Evito brigas e discussões, evito aparecer, fujo dos elogios. Cada vez é mais desgastante sair de casa, escolher a roupa, cumprimentar as pessoas e se mostrar amável e interessado em conversas que eu realmente não tenho nada para acrescentar. Tenho é vontade de ir embora, para qualquer lugar, mas ir, estar em movimento, passando, observando a estrada riscando. Talvez eu seja bom em ficar comigo, nada mais.

(Pedi um sanduíche com carne, salada e mostarda. A cerveja acabou. Nada de frutas.)

Um milhão de idéias aparecem na minha cabeça o tempo todo. Por isso comprei um bloco de anotações, registrando tudo, sempre que o lance bater. O estranho é que este texto que escrevi agora não estava em nenhuma das idéias que me levaram a riscar o bloco. Não sei se estou fugindo ou sendo sincero. Sei que estou descendo, mergulhando em meus sentimentos e cutucando todas as incoerências que o coração comporta. Baixo, para baixo.