sexta-feira, março 04, 2005

O intelectual dos Trópicos

No sé qué quiero pero sé lo que no quiero
Sé lo que no quiero
Y no lo puedo evitar
Puedo seguir escapando y aún lo estoy pensando
Lo estoy pensando pero estoy cansado de pensar

No sé lo que tengo
Pero sé lo que no tengo
Sé lo que no tengo
Porque no lo puedo comprar
Puedo seguir cantando
Pero sigo esperando
Sigo esperando pero estoy cansado de esperar
Todo lo demás
andrés calamaro

SENHOR, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chamma, que a vida em nós creou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem, - ou desgraça ou ancia -,
Com que a chamma do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
XII. PRECE
fernando pessoa

A cordialidade... a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro

Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra
Raízes do Brasil
sérgio buarque de holanda



Um batuque contínuo vazado entre as pessoas, roupas leves, chão molhado. Choveu no início da noite por pouco mais que uma hora. Refrescou, mas continua sem vento. Só uma brisa leve, vinda do continente que a gente avista fácil do pequeno Centro da Ilha.

O calçamento de pedras irregulares, a areia marinha, a chuva, maresia... Estou cansado e preocupado em não escorregar. Como se fosse possível encontrar um rosto conhecido no meio da folia, encosto num pedaço do mirante e fico procurando por ela. Encontro só os rostos coloridos dos brasileiros, rosas, marrons e amarelos, todos melados de suor com chuva. Assim, entrego todo o meu pudor da civilização sociológica e me rendo ao gigantesco sentimento de nossa barbárie.

Tão orgulhoso da batucada, do melaço, piscadelas e cerveja, tão solitário na multidão, inicio a subida da ladeira que dá na igreja. Lá mora São Sebastião com seu dorso nu, viril e belo. Tropical. Contorno a curva do hospital e entro na primeira ruela tranqüila que encontro, passando um casal aos beijos e um rapaz, quase na esquina, urinando numa pilha de sacos de lixo. Estou tão cansado.

Não consigo entender como posso estar tão bêbado já no início da madrugada. Será que o calor ajudou? Quando consigo sentar num lugar sem barro, seguro a cabeça com os braços, enrolando-a, tentando parar com a rotação da Terra. Não entendo a bebedeira, não entendo o samba, não entendo o forte cheiro de urina, não entendo a solidão. Não entendo nada.

É certo o título de civilização? “Pros diabos com minhas idéias de palanques”, mas não consigo deixar de pensar nisto. O que está se passando com este país moço, com estes rostos coloridos, com meu coração falido? Como pode um povo conhecer este samba triste, esta melancólica natureza, esta decadência sem antes não ter experimentado a antigüidade? Brasil subverte a ordem histórica orquestrada pelo deus hebreu e vive no esquema pecado – redenção, mas nunca consegue o perdão. Os cheiros inebriantes, as cores excitantes, o barro das ruas, meus pensamentos luxuriantes... Quanta bobagem! Quanta tristeza! Quanta saudade!

A derradeira toada: fico na saudade. De tudo, até do porvir, do país do futuro, das minhas causas-piada. Uma tremenda saudade das coisas que justificavam as minhas leituras, lamúrias, bilhetes e flertes. Saudade dos sonhos.

Com o coração doendo de tanta confusão quero começar a gritar; não consigo. Quero berrar bem alto, animalesco, sem medos ou culpas. Sair daquela rua torta, da noite abafada, da batucada ecoada. Gritar sem ter que pedir licença pra violência e sem vergonha do que faço, estudo e acredito.

(Do alto do morro da igreja, São Sebastião com o peito livre. Sons de trompetes. Gritos dos vendedores de cerveja.)