domingo, fevereiro 20, 2005

Pisada de Elefante

Todas as canções. Que delícia se nesta tarde eu tivesse todas as canções. Tantas lembranças carrego nestes momentos de intimidade e solidão; cada pensamento cantarola uma canção ou melodia, espécie de trilha sonora. Cada beijo, eu não esqueço, cada amizade rompida, cada sonho esvaziado. Sempre as canções, que continuam comigo.

Hoje, na tarde que se arrebenta em provocações na minha janela, só penso em correr, fugir e desaparecer. Vontade de cantar um “Deu pra ti baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau!”. Vontade mesmo de ir por aí, levando um violão debaixo do braço. Vontade de cruzar as trilhas e estradas de terra que eu conheço dos tempos de moleque e ir, levando, saindo, passando.

Pés no chão
E os olhos vão procurar onde foi
Que eu me perdi
(Carro de Boi. Cacaso e Maurício Tapajós)

Não posso ser muito claro, pois o que tenho são reticências. Tudo por fechar; tudo por fazer. Olho no espelho, nas roupas penduradas em cabides, nos livros riscados e na coleção de discos: eu quero encontrar a antiga referência, gana, força ou gosto que me tomava pela mão e tornava tudo mais simples. Vasculho em meu cheiro e nos detalhes do meu corpo, contando cabelos brancos, dores nas costas e pontadas de saudades. Procuro nas cartas de amor, bilhetes suicidas, sambas da tarde, agendas de telefone. Em cada papel e toda assinatura, talão de cheques, retrato 3x4, resto de café e lâmina de barbear. Procuro um rastro, vestígio ou testemunho de um sentimento que não me lembro bem.

Tudo o que podia ser. Mas calma, rapaz, ainda há o caminho conhecido da humildade. Quantas vezes eu voltei pra casa, em silêncio, sem fazer absolutamente nada além de cuidar da respiração. Quietinho. E não se trata de uma ausência de amor próprio, coragem ou coração; na verdade eu reconheço o meu valor, o meu lugar diante dos acontecimentos. E, humildemente, aceito quando não tenho mais nada pra fazer, olhar, escutar ou amar. Sem invejar os rostos corados, penso apenas como devo agir e volto pra casa chorando um espaço de paz.

Com você na cabeça, tal qual este Sol de meio-dia, não sei encontrar muitas respostas. A única certeza é que preciso ocupar meu lugar, reservado ou não, e lá relaxar das tensões, da falta de orgasmos, do conjunto de incertezas. É a prioridade sair daqui.

Juntando dinheiro, tenho ocupado as horas com muito trabalho. Com o mestrado sonho todas as noites, e seguindo os conselhos de uma amiga terapeuta, anotado os devaneios. São muitos e estou inseguro. Na escola funciono sem grandes ideais, pensando no quanto vou receber quando chegar o dia 10. Risco os dias no calendário, apressando os feriados, as férias, o adeus. E na visita ao Barão de Montesquieu e seu O Espírito das Leis, só consegui retomar a antiga Azia Moral. A criação de três poderes harmônicos e independentes não abriga a eleição do ilustre conservador Severino Cavalcanti com os votos de 300 nobres deputados federais.

Luis Inácio falou, Luis Inácio avisou
São trezentos picaretas com anel de doutor
(Luis Inácio. Herbert Vianna)

Passa o tempo, escorre a nuvem, muda o céu. Quem sabe eu tivesse um pouco mais de coragem ou de outra virtude guerreira? Mas este tempo abafado, estas paredes lisas e esta tarde vazia não ajudam ninguém a se tornar um herói de cinema. Ou um amigo sorridente. Ou um marajá de elefante.