quinta-feira, junho 23, 2005

Átila, o rei dos hunos

“Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos, em ouro e glórias. Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver.
Este foi o efeito do encontro fatal que ali se dera.
Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização.
Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente.
Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas.
Os índios, esplêndidos de vigor e de beleza, viam, ainda pasmos, aqueles seres que saíam do mar”.

O Povo Brasileiro
Darcy Ribeiro

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.
Índios
Legião Urbana

Privou-se a dor de sua inocência.
Nietzsche



Enquanto sentia seu corpo quente olhava para a estante de livros. Senti que nada ali tinha validade ou serventia agora, nenhum poema ou tratado de filosofia política. Nietzsche, Drummond, Kafka e Sócrates: todos perdidos em meu mundinho rompido.

“O que fazer?”, gritava Valeriano. Átila sitiava Roma, estava em suas portas, urrando sua língua bárbara e cozinhado as carnes dos legionários vencidos. Valeriano sabia que a cidade não agüentaria mais uma semana de cerco. Como estavam todos fatigados e judiados pela fome, sede, frio e loucura, ateou fogo na biblioteca. Não sentia mais frio. E todas as galerias de sábios clássicos, consumidos pelo fogo, serviam apenas como combustível. Perdeu-se. Ganhou-se.

Tocou seus lábios com ternura, pois queria sentir as rugas da boca e as direções da língua. Não consegui beijá-la como antes, apesar de seus pedidos. Não conseguia tocá-la sem sentir um certo constrangimento, uma pontada no coração, uma dor aguda e forte. Mexia em seu quadril com uma mão, com a outra tentava se masturbar. Imaginou estar deitado com putas e gozou muito pouco. Teve nojo do seu esperma melando seus corpos e, como estava escuro, aproveitou para chorar sem que ela percebesse.

Hoje acordei confuso. Não tive vontade de viver, mas tampouco desejei a morte. Levantei sem lavar o rosto, sem tomar café, sem mudar a roupa. Dirigi até o posto, abasteci e fui até uma outra cidade. Não tinha fome, nem choro, nem desejo. Não senti saudade e nem sonho. Quando achei que já estava longe, fiz o retorno e voltei pra casa. Almocei e bebi um cálice de vinho tinto. O sangue de Cristo.

Como foi possível? Como me entreguei tanto? Será que eu não aprendo com tudo o que passei na vida? A impressão é que não. Novamente os mesmos erros, as mesmas armadilhas e medos. Não dá pra esquecer e nem pra ficar lembrando. Não dá.

Desta vez vi de perto a barbárie. Fui invadido e não quero mais saber da civilização. Chega dos tratados de filosofia políticas, das obras de Gustav Mahler, do texto de Benedetti ou da TV sem som. Basta de amar e esperar e desejar e possuir e perder e chorar. Cansei das palavras escritas, faladas, cantadas, ditas, lidas ou sentidas. Quero balbuciar.

Barbarói. Barbarói.