sexta-feira, julho 30, 2004

Eu tenho uma camiseta escrita “Eu te amo”

A barbárie... não vale nem um pouco mais que a cultura, que mereceu a barbárie como represália contra sua monstruosidade bárbara.
teoria estética, t. w. adorno

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.

índios, Renato russo

 
Creio que se todos assumissem seu lado Roberto Carlos o mundo seria bem mais amoroso e, por isto, melhor de viver. Eu, ao menos, sinto que o que carregava de precioso era meu imenso poço de sensibilidade, uma fonte farta e descontrolada de sentimentos nobres, vivos, pulsantes e incrivelmente humanos. Sinto mesmo que este era o meu tesouro. Meu lado Roberto Carlos, que cheirava brega e exagerado, me fazia vibrar com quase tudo, cantando bonito e sentindo saudade, criando planos e relaxando sem culpa. Baladas sangrentas, abraços pesados, Nelson Rodrigues, sorvete de Flocos, Viaduto do Chá, gol do Fluminense, comida chinesa, pastel no Mercado, Nelson Cavaquinho e inúmeras cartas. E tudo sem ensaio, de primeira, correndo riscos, chutando latas e deixando a barba crescer.

Nos desencontros da vida, comuns a todos, vejo que minha maior perda foi esta disposição de caráter aos refrãos melosos do Roberto, ainda mais se eles fossem interpretados pela Maria Bethânia. Pois antes me era muito fácil e natural fazer, dizer e pensar em algum tipo de carinho, afago, mimo, agrado e amizade. Talvez fosse muito fácil seguir feliz porque o cotidiano era mais ameno e tragável, mas também estou certo que minha cabeça ainda acreditava em algumas belezas que hoje continuam bonitas, mas agora extremamente distantes e carentes.

Sou incapaz de um gesto comum de amor como brincar com um cachorro e conversar naturalmente com meus amigos. Parece que estou sempre pressionado, escondendo algo ou fugindo de alguém. Uma farsa diária sem demonstrar afeto por nada, rígido, silencioso, calculando os passos e os gestos. Civilizado, vaidoso e adaptado. Truculência executiva de um yuppie, distância contemporânea. Fingi na hora rir. Variam os nomes e diagnósticos, valores e graduações, mas o sentimento de desamparo e ignorância se espalha em minha memória como quando a gente pinga uma gota de tinta escura num copo d’água.

Por vezes penso que a alma passional me foi arrancada, sofrendo uma brutal invasão, conquista e colonização. Podia até ser exagerado nas ações (ressuscitando a cordialidade do Sérgio Buarque), precipitado nos toques, confuso nas palavras, tosco, imperfeito, selvagem. Podia até ser ignorante na sociologia, idealista na política, explosivo na amizade e cabaço no sexo. Podia ser uma montanha de defeitos, mas preservava uma delicada inocência, louca como todas elas, mas assegurava sempre uma nova paixão e brilho nos olhos. Soava meio janota, mas abrigava uma nobreza na personalidade muito alegre, deliciosa e vigorosa.

Na cabeça se agita o arrependimento de ter permitido esta castração, tal desrespeito. Deixei que entrassem no tutano e fiquei quietinho para não incomodar. Tinha que reagir! No fim aprendi a dissimular com categoria e precisão absoluta. Uma muralha com a base de isopor, igual aos gênios que tanto me incomodavam.

Lembrei de dizer que meu lado Roberto Carlos se emociona mais com as baladas do Ira!. A estranha voz do Nasi me agrada tanto que tento forçar uma imitação. E é desta banda predileta que tiro mais uma citação. Pra terminar o texto.

Vivendo e não aprendendo
Eis o homem
Esse sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro
Seu amor hoje
Me alimentará amanhã
Eis o homem
Que se apanha chorando

quinze anos, edgard scandurra