sexta-feira, agosto 20, 2004

Estandarte curioso

Eu sou como um circo de lonas estragadas
Onde o palhaço já não faz mais rir
Onde o trapézio há muito está parado
porque o medo foi morar ali.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Em que a banda já não quer tocar
Onde as jaulas se restaram abertas
porque nem bicho se deixou ficar.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem ter mais público para aplaudir
Temendo aqueles que atiram facas
Temendo tudo que lhe quer ferir.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem alegria, sem emoção.
No entanto, existe aquela corda bamba
Onde balança o meu coração.
lonas estragadas
mabel velloso

Em belas conversas de botequins já falei, muitas vezes, sobre meu de desejo ir. Já escrevi muito sobre isto porque este tema e esta certeza estão sempre comigo, sejam nas noites na frente da TV ou nas longas caminhadas diárias. Eu sei que preciso mudar como uma estratégia de sobrevivência e, também, como forma de alimentar meu coração curioso.

Nesta semana aconteceu uma coisa engraçada. Muitas pessoas, diferentes e sem ligações entre si, me perguntaram exatamente a mesma coisa: mas você quer ir para onde? Confesso, sem nenhum pudor, que refleti bastante sobre isto, embalado por solos inspiradores do Miles Davis.

Não sei exatamente para onde ir, mas tenho algumas idéias, o que me deixa feliz e esperançoso. Gostaria mesmo é de morar num prédio de três andares na Vila Madalena, em São Paulo. Ele fica no cruzamento das ruas Purpurina com Harmonia, bem pertinho de uma padaria, de restaurante e de um boteco. Lá em frente passa um ônibus para a USP e o metrô não fica muito longe. É um lugar bacana! Eu quase morei lá, faltou pouco, pois a proprietária preferiu a oferta de um salão de beleza. Tem outro lugar, ainda na Vila. No começo da rua Fradique Coutinho eu encontrei um sobradinho bem preservado, no estilo das casas dos anos 40. O banheiro era antigo com uma banheira enorme e os ladrilhos verdes. Ficava perto de um restaurante mexicano (oba! Cerveja Sol e pimenta!). Não deu certo, já que não consegui cobrir a proposta de um estúdio fotográfico.

Penso que esta necessidade de sair está presa no meu interesse em conhecer novas pessoas e de sentir emoções desconhecidas, de ser surpreendido. Bem ou mal, em Sampa eu sempre estava em transito, trombando com muita gente, algumas delas interessantes. Gosto da vida que levo por aqui, mas sinto falta desta dinâmica que tanto me seduz. Ainda assim, entendo que no tempo que permanecer no exílio devo aproveitar para gozar de outras situações bacanas.

Hoje sai para caminhar com minha mãe. Andamos bastante, mais de uma hora. Ficamos a maior parte do tempo em silêncio, caminhando sem pressa e com as mãos dadas. Achei muito bonito. Na volta, depois da parada na sorveteria, ela começou a falar da saudade que sente do pai dela. Faz tempo que meu avô faleceu, eu era pequeno e lembro de poucas coisas, mas guardo o rosto e o comportamento doce dele na cabeça. Pensei no quanto estou ficando parecido com ele, com a mesma pela branca, os mesmos olhos claros, os cabelos ruivos rareando, o nariz grande, os óculos e, com este Sol, o chapéu. Ele usava um feito de feltro, eu uso um tipo “Panamá”. Mas ambos foram feitos pela indústria Prada! Não disse nada disto para mamãe, mas fiquei intimamente honrado e alegre por sentir que herdei algumas coisas dos meus antepassados. Meu avô era doce e chorava ouvindo música. Ele também gostava de macarronada e de dançar boleros. Além disto, minha mãe me contou que ele dizia brincando que gostaria de fugir com o circo.

Alguém, um dia, entrou num navio na Alemanha. Outra pessoa fez o mesmo na Itália. Sei que desceram no porto de Santos. E em algum momento desta “vinda” meu avô nasceu. E ele usava chapéu de feltro. E ele tinha os olhos claros. E ele era doce. E ele queria fugir com o circo.

E hoje carrego, com a mesma força de quem ostenta um belíssimo estandarte, o seu coração curioso.