O Vampiro que gostava de suco de tomate
Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
nelson rodrigues
É horrível sofrer com a insônia, ainda mais quando dormir se transformou no grande acontecimento do seu dia. Fechar os olhos e receber a cumplicidade do escuro me é confortável, delicioso, como vestir uma malha quentinha e macia. E conforme ensinou Milan Kundera, se alguém procura o infinito, basta fechar os olhos! A escuridão pura e violenta, sem limites, sem cercas, sem donos, sem nada. A escuridão hoje me é uma dádiva.
A insônia é horrível! Fico num paradoxo terrível, pois desejo a hora de me recolher no escuro para desligar todas as realidades, mas quando isto é feito a cabeça redobra sua atividade, almejando refletir todas as dores do corpo e da alma, chamando para si as responsabilidades da existência. E eu fico ali, perdido no escuro, com as idéias borbulhando. Um notável paradoxo: o sonolento que não consegue dormir!
Recentemente fui atraído por um comentário de uma amiga importante. Ela me chamava a atenção por desconfiar de outro notável paradoxo, pois como seria possível o trabalho de cientistas humanos que comportassem uma tremenda dificuldade de se relacionar com as pessoas? Indo fundo, minha amiga se questionava como é plausível que uma antropóloga não goste de gente. Realmente, como é isto pode acontecer?
Fico pensando. Será que por culpa de nosso instrumental teórico e prático na observação e reflexão, conseguindo alcançar uma visão contraditória e assustadora da humanidade, nós acabamos aceitando a distância como saída prudente? Enquanto historiador já me surpreendi várias vezes afirmando nossa falência enquanto um projeto viável, quase pateticamente berrando ao divino que somos uma absurda coletânea de enganos. Pessimista, não? Mas como me dizia um velho professor húngaro, “o otimista é um pessimista mal informado”. Pois bem.
Fiz uma força para lembrar de figuras parecidas e encontrei o vampiro doidão que odiava sangue, o padre marxista que terminou ateu e a prostituta que se apaixonava por todos os seus homens. Pessoas fortes ou ridículas?
Não consigo pensar pelos outros, pois já acho bastante confuso me entender. Sei que desde que comecei a registrar eventos na memória e construir algum tipo de simpatia e consciência, me atraía a vida difícil da contradição. Creio que é na confusão que as pedras rolam, as cabeças pendem e as luzes piscas. Sem romantismo ideológico, gosto dos canalhas, dos traidores, dos suicidas, das putas, dos loucos, dos malditos, dos violentados. Como historiador vejo neles a expressão de todas as contradições de suas sociedades comportadas por uma aguda moralidade e nobreza. É mais fácil decepar um rei do que roubar a alma de um humilhado.
No meu rincão, sou um historiador tão incoerente, contraditório e incompleto que estes precidados deveriam me afastar do que insisto em fazer. Mas não. São estas as forças que ainda me seduzem. Sim, porque graças a estes “defeitos” que consigo me sensibilizar e solidarizar com a imperfeita humanidade. Sou parte pulsante dela. Graças a estes defeitos imperdoáveis e exagerados que consigo seguir com força, mesmo sendo fraco.
Daí eu voltei ao texto da minha amiga antropóloga. E fiquei tão feliz com as coisas que ela consegue escrever, fiquei emocionado e alegre. Percebi que como uma generosa herdeira de Durkheim, Mauss e Lévi-Strauss, ela extraiu do meu discurso tudo o que há de mais elementar e essencial em minhas entranhas. Ela leu com atenção. E isto já me valeu o dia!
FLIP FLIP FLIP, no esconderijo do armário, cercada por portugueses do Canadá e negras militantes de Salvador: despertei agradecido por nossa incoerência!
(Mas tudo o que eu quero é dormir.)
2 Comments:
Alex,
Mais uma vez adorei seu texto! O mais legal é perceber a conexão dos amigos, a semelhança dos iguais...(?)
Mas é isso mesmo!
EU já tinha passado por aqui, mas com o seu convite, resolvi me sentar e ficar a vontade. O seu texto é muito tocante e sincero e é isso que eu aprecio e até busco...
Eu também tenho descoberto muitos blogs verdadeiramente obras literárias... Acho que este aqui está no caminho...
um abraço blogueiro!
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