quinta-feira, novembro 18, 2004

Um instante

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Urgentemente
Eugénio de Andrade



Estou escutando uma canção, cantarolada por uma voz feminina, com uma melodia triste e melancólica, o que me lembra um lamento. Não sei qual é a língua cantada, as palavras rasgam meus ouvidos como acontece quando encontro algum europeu do Leste, os herdeiros de Penteu e Cadmo, espécie de homens que nasceram entre a cristandade e o Quarto Crescente, na fronteira do reino da humanidade e do capricho dos deuses. A ladainha melancólica, nessa língua estranha, continua e se aprofunda, empurrando meus olhos para baixo, franzindo minha testa e tomando as mãos cansadas.

Chove muito e abro a janela para ficar observando a água desabando e sulcando a terra, riscando toda a paisagem, umedecendo, arando, caindo. O cheiro da chuva encontrando a terra é um dos tesouros que gosto de preservar aqui no interior, seu cheio úmido e sua visão infinita das coisas derretendo, fluindo e passando. Tudo isto, mais a melodia húngara ou iídiche, me fazem entender que meu desanimo não é eterno, que ele vai escoar e se transformar como o som da canção no ar ou a gota de água na terra.

Ainda procuro dormir, imaginado um tempo de hibernação, suspendendo a vida até a fertilidade da primavera. Encontrando uma lacuna, a ilha de Calipso, ficando calmo em harmonia com o ritmo dos pensamentos e da respiração. Um esconderijo longe de tudo, até mesmo de minha razão, para desabar, como agora faz o céu, e deixar todas as águas lavarem meu espírito, lágrimas, idéias e crenças. Assim, eu que já me acostumei a lhe esquecer, encontro algum descanso para, simplesmente, retomar os sentidos que inflamam o meu coração.

Não me agrada viver na incredulidade e no niilismo, nunca fui um bom cético; tampouco vejo sentido em práticas ascéticas e no isolamento. Tenho saudades de meus amigos e tento me apaixonar. Viver sozinho, encerrado e recluso com minhas idéias serviu para me imprimir humildade, silêncio e o desejo de encontrar novos amores e aventuras. Sinto que algo precioso já foi perdido.

É urgente o Amor. Ainda assim, me esqueci como se faz, como é, como acontece. Cansado deste esgotamento e do exílio, retomo o sentido do eterno retorno, da promessa, do tesouro que procuro. É urgente a partida. É urgente o retorno.