Hapiness Is A Worm Gun
nélson werneck sodré
O Fascismo Cotidiano
Participo de uma lista de discussão pela Internet formada por colegas que estudaram comigo aqui no sertão. Uma galera bem diversificada, que conheço há uns 15 anos (alguns, até mais). Tem de tudo: químico, engenheiros, administrador, dentista, arquiteto, físico, médico, advogado. Somos parte da elite desta terra morena, afinal, todo mundo formado em um curso superior num rincão de analfabetos.
A lista está quase sempre parada, só com mensagens que reproduzem piadas e eternos convites para bebedeiras. De vez em quando aparece uma discussão por lá que foge do itinerário do final de semana. O atual debate está se dando em torno do estatuto do desarmamento, assunto que realmente mobilizou quase todos os participantes da lista.
Vários pontos de vista foram colocados, alguns extremados e opostos, mas até que o debate rolava com respeito e interesse. Argumentação e vontade de pensar sobre o assunto, ninguém estava com sua decisão fechada e eu aproveitava o desenrolar para refletir sobre meu voto.
Ontem um colega, o médico, passou um e-mail que me deixou triste. Por dois motivos. Num primeiro momento ele defendeu, apaixonadamente, o armamento da população civil como uma garantia de segurança, estabelecendo um verdadeiro clima de faroeste, pois numa sociedade armada você pensaria duas vezes antes de burlar alguma regra ou lei. Seria punido não pela instituição, mas pela sociedade civil, o clássico “fazer justiça com as próprias mãos”. O segundo ponto acusava os “falsos moralistas e utópicos de livros” que estavam “pondo tudo a perder”. Acho que foi uma indireta pra mim, já que sou o “livreiro” do grupo.
Não respondi e nem poderia. Estou cheio de trabalho e não tenho o que argumentar, racionalmente, com quem acredita muito mais no poder de um 38 do que na ação, em eterna construção, do Estado. No entanto, a mensagem me provocou um mal-estar tremendo. Fiquei pensando em algumas coisas que estou lendo e acompanhando pela TV e jornais, no quanto temos um traço autoritário significativo em nossa história nacional. Um exemplo disto colhi na fala do senador Jorge Bornhausen (PFL - SC), que ao comentar a crise política, afirmou: “nós agora vamos nos livrar dessa raça por muitos anos”. Maneira singular de retratar a esquerda, como uma raça que precisa ser eliminada, dito assim, sem papas na língua, sem maquiagem. Eliminar uma “raça” que pensa diferente de você!
O que me preocupa é o endurecimento do conservadorismo, quase cotidiano, corriqueiro, banalizado. Este sentimento do senador Bornhausen e o descarte da minha argumentação ou função por ser “livreira e utópica”, assim como o comportamento estúpido do deputado federal Jair Bolsonaro (PP – RJ) ao convidar um torturador para acompanhar um depoimento em CPI, só revelam, às claras, nossa eterna inspiração autoritária de país escravista. É a mesma linha que diz “bandido bom é bandido morto” ou “pobre é pobre porque é burro”. Dito isto em qualquer país, sob qualquer circunstância, já é um atestado de falência humana, mas no Brasil, com nossa história sangrenta e segregacionista, é, além de perigoso, triste e vexatório.
Uma ética de seguir o sinhozinho, ou coisa do gênero, é o que impera no Brasil, na elite brasileira. Não existe a possibilidade de pensar no coletivo, na esfera pública, no que realmente importa para o país; é no plano individual que as coisas se resolvem e desenvolvem. E entre o “sim senhor” e o “se fudeu, playboy”, apodrece uma terra cheia de possibilidades, de cultura mestiça e original.
E embaixo do porrete mora a nossa alma e reside o nosso desencanto.