sábado, janeiro 28, 2006

Sob a perspectiva do exílio


Eu sou Josefo, filho de Mathias, um hebreu por nascimento, nativo de Jerusalém e sacerdote.
Bellum Judaicum, I: 3

Não discutirei com os críticos severos a respeito da emoção: que atribuam os fatos a história e as lágrimas ao historiador.
Bellum Judaicum, I: 12

Vou evitar o tom de “acerto de contas” ou de despedidas. Não é bem assim. Também peço desculpas por não lhe citar no original grego, pois meu computador não está mais com a fonte helena que devo ter perdido na última formatação.

Quanto tempo faz? Quase sete anos, ou um pouco mais, não me lembro. Edição em espanhol, argentina, de 1961. Uma tradução boa, direta do grego. Ainda não existe uma edição portuguesa tão zelosa assim de suas obras. Dois anos depois encontrei a mesma tradução em um sebo, o ORNABI, na rua Benjamim Constant, e aí comecei a colecionar seus escritos.

Como corpo principal eu utilizei a edição estabelecida por Thackeray, da Loeb Classical Library. O quanto exatamente de seu original está nela, que não sofreu intervenções dos copistas medievais, eu não sei. Mas existe coerência, e acredito que você está realmente presente ali.

É estranho pensar minha vida sem você. Ontem passei a tarde toda lendo sobre o Renascimento italiano. Não era um livro sobre judeus. Quando me dei conta disto fiquei um pouco melancólico, já que estava acostumado a esta disposição. E por alguns minutos eu não soube o que pensar.

Não foi fácil colocar um ponto final, foi necessário. Gostaria de ter feito coisa muito melhor, ao menos algo que fosse honroso aos dois mil anos de espera. Foi o que consegui fazer e, espero, retomar o texto após as contribuições. Corrigir os erros e minimizar os furos, lacunas e desconhecimentos. Mas o que você me deu, isto sim, está comigo e muito bem amado.

Se eu bebo um copo de vinho, francês ou gaúcho, ele está dentro de mim. Deixa de ser regional, nacional ou internacional para constituir-se em minhas células, no meu corpo, no meu gozo. Aqui estamos também, íntimos, até o esquecimento.

Não há mais compromisso. Entretanto, seu peso ainda desejo sentir por muito tempo. Acabou a obrigação, mas firmou-se uma amizade carinhosa. Não sei do futuro que, como fez com você, me assusta. Não sei se vou continuar entediado entre crianças, se vou ingressar em outras áreas ou se, finalmente, conseguirei produzir um lugar para reflexões. Apenas sei que em qualquer lugar estaremos ligados pela memória e referência.

Dizem que um historiador não deve cometer o desatino de se enamorar por sua fonte. Pura bobagem. Não sou jornalista da Folha que acredita piamente na imparcialidade de seu ofício; por estes tenho cada vez maior desprezo. Tentei buscar a verdade, como nos ensinou Tucídides, interpretando o passado, como nos mostrou Políbio.
Você me ensinou a paixão.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Chão de estrelas



Nunca imaginei estar entre pessoas importantes, mas já estive. Hoje estava navegando pelo site da USP. Consegui assistir aulas de grandes professores e freqüentar boas bibliotecas por quase uma década. Estas foram boas provas da genialidade humana que eu consegui colecionar. Estive durante um doce período de minha vida entre valorosos intelectuais.

E as cidades? Viaduto do Chá ou Santa Ifigênia, pouco importa: sempre que conseguia uma brecha durante a semana corria para o centro de São Paulo, bem vestido, na maior parte das vezes com um paletó surrado marrom. Dali cortava até o Mercado, Pátio do Colégio, Sé, Quintino Bocaiúva, Abdu Schain... Acabava preso pela boca, parando em alguma padaria, mordiscando pão e esfriando o café. Nas noites eu sentia samba, mesmo branquinho. O Bar do Geraldinho, no Bixiga, era a partida, engolindo as doses de jurupinga com gelo. No samba da Vila Madalena eu conhecia todo o itinerário que possivelmente terminaria no Sem Saída. Mandioca frita com cerveja. E samba.

O Rio surgiu alguns pares de vezes, com direito ao sanduíche do Cervantes e almoço no Lamas. Quase nunca queria saber da praia, mais interessado em ficar hospedado na Rua do Resende, bem perto do Bar das Quengas e de muitos sebos de livros. Dali eu andava até a Rua da Carioca pra comer comida alemã no centenário Bar Luiz. Adorava observar, quieto, a vida do carioca, o jeito dele pedir a bebida, a forma como comentava os gols da rodada e, claro, a constatação de minha paulistanidade. E era bom descobrir, em cada quadra, um novo tipo, novo prédio, nova cor, novo paladar.

Mulheres não foram muitas, nem poucas, mas na medida que eu pude agüentar e entender um pouco de seus mistérios. De nenhuma delas eu me arrependo, lembrando de como sempre foi delicioso entrar em íntimas relações. Nunca fácil.

Amigos não foram tantos, mas fiéis o suficiente para estarem comigo, mesmo na distância, até agora. Aprendi que com eles eu não preciso me preocupar com explicações ou loucuras: simplesmente é.

Nem sei por qual motivo comecei a escrever isto. Posso desconfiar. Quero saber se valeu a pena, ainda mais se hoje muito disto é passado.

Não vou responder, pois nesta noite quente e melancólica eu desejo, humildemente, me contentar com a dúvida.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Sol (eu pensando em botequins)



Rádio Cultura FM pela internet. Todo dia, plugado, horas e horas enquanto trabalho. Agora está tocando uma obra do Ravel, a sua última. Não a conhecia. Tem um pé no jazz, o que me agrada muito. Quem sabe um dia eu consiga arrumar um bom tempo para ler a meia dúzia de livros sobre música erudita que eu colecionei, estudando um pouco mais o gênero. Sim, pois música erudita exige dedicação, sem pedantismo.

Ainda estou chateado por não ter conseguido uma vaga de professor num colégio de uma cidade vizinha, também do sertão. Preparei com cuidado a aula e fui seguro. Sai de lá mais confiante ainda. De qualquer forma, preciso me mexer, pois já estamos entrando em Fevereiro e só consegui trabalho nas manhãs de Segunda.

É complicada esta vida de professor da rede particular, ainda mais no começo de carreira (e olha que eu não estou tão no começo assim). Estava fazendo umas contas ontem, e só nas entrevistas de Sampa eu gastei R$240,00! Isto só para ir quatro vezes até a capital conversar com possíveis patrões. E até agora nem um e-mail ou telefone de consideração, avisando que não cai nas graças do coordenador porque tenho nariz grande e bafo de café.

Irritante é ver pessoas sem a menor qualificação ocupando cargos de direção, escolhendo docentes, planejando projetos pedagógicos. E isto existe muito, em quase todas as escolas de porte pequeno e médio. Enfim, estou esperando, enviando currículos, fazendo contatos e, como fez o Pedro Pedreiro do Chico, esperando.

Enquanto isso...

Música, judaísmo e antropologia. Calor também. Incrível como consigo, mesmo nesse Sol de Saara, continuar consumindo meus litros diários de café. Agora mesmo, quente e cheiroso, com goladas generosas enquanto encharco a camisa de suor. Camisa nada! Estou com meu uniforme de trabalho: shorts e chinelas!

Como podemos levar isto em consideração? Nem mesmo panca de intelectual consigo ter. Vamos lá, num exercício simples de imaginação: o especialista em história antiga, com sua camisa branca, em seu gabinete abarrotado de livros, lendo em francês, em grego, em alemão. Sai de seu escritório, coloca seu paletó, atravessa a rua, e se dirige até o café mais próximo para bebericar alguma coisa enquanto pensa em problemas de filologia.

Aqui não há gabinete e nem leituras em alemão. Na maior parte do tempo estou de cuecas com um ventilador MADE IN CHINA nas costas, aparelho que quando ligo parece que vai decolar de tanto barulho que faz. Calcanhar devorado por mosquitos, pensando na dengue e limpando minha imagem de São Sebastião. O santo do dorso nu. Calor. Ao menos escuto Ravel e, agora como acabou de anunciar o locutor, Vivaldi. Esta peça eu já conheço.

Brasil é o meu país. Óbvio. Amo e odeio este lugar. Amo por ser tão complexo, plural, colorido e imagético, um país cheio de possibilidades e análises. Odeio por não conseguir um emprego decente e ter que viver atolado em misérias até os joelhos. Foda. Existem dias que eu nem consigo comer, nem consigo dormir. Não sei.

Não sei. Não sei. Não sei.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

...na casca do ovo!

Don’t worry about a thing
Cause every little thing is gonna be alright
So, don´t worry about a thing
Every little thing is gonna be alright
Three Little Birds
Bob Marley


Tocando a semana embalado pela mais nova polêmica do Caetano Veloso. Acompanhei pelos jornais. Realmente, Caetano é o rei da retórica. Por qual motivo ele insiste em querer ser um intelectual? Ser um grande compositor não basta? De qualquer forma, escreveu tantas bobagens em sua carta aberta, utilizou tão mal certos termos, como totalitarismo, que parece estar mais preocupado com simples retórica do que com uma análise um pouco cuidadosa. Deu pena.

Continuo no texto da dissertação que pretendo terminar até o dia 22 ou 23 deste mês. Preciso de uns dias para descansar, fazendo absolutamente nada. Nem penso em viajar, pela falta de grana e, como não, pela falta de tempo. Peguei quatro aulas numa escola em outra cidade daqui do sertão, e elas começam dia 30. Assim, corrido mesmo.

Sinto um aperto no coração. Está difícil manter a calma.

Depois de um final de semana delicioso, ontem fui até tarde, virando a noite escrevendo. Prefiro assim, pois, além do silêncio, está mais fresco. De qualquer forma, gostaria de me levantar mais tarde hoje. Não foi possível. Não era nem nove da matina e o telefone chamou. A pedagoga de uma escola de uma cidade vizinha na linha. Tinha passado por uma entrevista, uma prova e uma aula-teste. Arrebentei na aula, utilizei charges do Quino e do Henfil, manchetes de jornais da semana e outras coisas que funcionaram bem. O tema foi “construção da idéia de cidadania”, bem amplo. Estava confiante e contando com as aulas. Não deu.

Ela me disse que entre dez candidatos eu fiquei em segundo lugar. Ótimo? Disse que vai precisar de um bom profissional em 2007 e que meu currículo estará bem guardado até lá. “Foi horrível escolher”. Agradeci e desliguei. Bom dia.

Não sei se estava iludido, mas acreditei que tinha conseguido estas aulas. Fui tão bem na seleção e estava tranqüilo com 2006. A meta era ganhar mais que no ano passado trabalhando em um lugar mais responsável. Fiquei muito frustrado.

Sei que esta não é a hora de me preocupar demais com isto, pois estou com o prazo do mestrado nas costas, mas não consigo disfarçar algumas decepções. Esperava mais do meu trabalho, da pesquisa que estou fechando, e sinto que, com tantos atrasos, acabei decepcionando meu orientador também. Esperava mais das escolas particulares que, ao que me parece, gostam de cultivar um terrorismo entre seus professores todo Dezembro e Janeiro. Está difícil arrumar emprego, mesmo com um currículo bacana, estabilidade então... Não consigo esconder estas pontas de frustrações e culpas.

Mas fiz um pensamento de ação para este ano. Não sou místico e nem costumo fazer simpatias ou juramentos, mas pretendo fazer de 2006 um ano melhor do que foi 2005. Começou difícil, com muito trabalho e muita espera, mas já tive boas surpresas. Na luta!

Planos eu só tenho um: tirar uns quatro ou três dias para dormir, ainda neste mês. Não gasto, não incomodo e não ofereço a outra face. Descanso. Quietinho. Justamente o que eu gostaria para começar bem 2006.

terça-feira, janeiro 03, 2006

A volta da Asa Branca



A coisa é bem assim: vamos terminar antes que ele termine com você. O ele é o meu mestrado e o você sou eu. Morou?

Estou trabalhando muito, o que me deixa um pouco irritado e sem muito entusiasmo para escrever outras coisas que não estajam relacionadas com judeus do século I. Judeus, romanos, Jerusalém, massacres e sutilezas políticas. É a velha história da compaixão humana: porrada pra todo lado.

Onde é que eu estava com a cabeça quando fui me enfiar em uma pesquisa tão complicada assim? Deveria estar apaixonado, não por uma pessoa, mas pelo tema. E paixão lá é coisa de se levar em conta?

Estou escrevendo e refletindo sobre o tema, a pesquisa ficando pronta, vendo as coisas por inteiro. Não está do jeito que eu gostaria, realmente não está. Mesmo assim, consigo ficar excitado por vezes, gostando do que leio, das conexões, da sisuda historiografia que coloco em meu texto. Pode ser que dê samba.

O samba do pançudo ruivo.

O estranho é pensar na minha vida sem Josefo (Iossef, Josephus, Joséphe, Guiseppe... vai ao gosto do freguês). Li e reli tudo que ele escreveu e muita coisa que escreveram sobre ele. Flávio Josefo, o judeu de Roma. Estou eu, agora, escrevendo sobre ele pra alguém ler. É muito estranho ver as coisas deste modo, saber que logo estarei fazendo parte da historiografia, levando críticas, parindo um texto científico. Ainda tenho medo de assumir as honras de historiador, talvez porque não consiga me ver assim. Gosto da biblioteca e do bar, o que é um começo.

E a Europa? Em 2001 tinha completa veneração pelo Velho Mundo, em especial pela França. Francófilo de Asterix. Até isto o mestrado mudou. Na verdade, derrapei em páginas prensadas com o peso de milhões de almas trituradas no progresso branco, na estrada de ferro, na Coca-Cola. Oui. Não que eu não goste de hambúrgueres ou revista Playboy, mas agora quero viajar para Buenos Aires. Um amigo me contou das livrarias, outro dos cafés, outro da zona. Noite portenha no horizonte do professor.

Professor procurando trabalho, é bom esclarecer. Afinal, sou um brasileiro de respeito, fudido, mas de família. Fiz seis entrevistas e agora estou esperando decisões do sistema educacional particular. Atuando, como lembra uma moça linda, na reprodução do capital. Pode até sobrar um bloco de aulas interessantes, bem na área que eu gostaria.

Minha casa está tão tranqüila, o que me deixa deliciosamente sereno. Estou sozinho a mais de uma semana e só estarei com minha família novamente aqui daqui uns cinco dias. Bom para trabalhar, experimentar receitas, tomar banho com a porta do banheiro escancarada e mergulhar no silêncio. Delicioso. Meus livros empilhados.

Telefone chamando. Não vou. Terminando a redação, corrigindo crases, formatando as citações. Nem chá, nem café. Meu banho de gigante e a barba por fazer.

Gonzagão.