quinta-feira, março 31, 2005

Simples

Como se fôssemos pássaros
voamos contra a vidraça.

Dançamos duas valsas sobre a mesa.
Roemos os ângulos dos móveis.

Copulamos em pleno vôo, depois
nos atiramos na chama da vela.

E um cheiro forte de borracha queimada
nos acompanhou até o paraíso.

Paulo Henriques Britto


Não vou escrever que estou cansado, pois não sou o único. Todos os meus amigos estão trabalhando demais, sem muito tempo para a diversão. Alguns estão ganhando um bom dinheiro. Eu estava com a conta no vermelho.

Quarta tivemos que ficar na escola enquanto os alunos faziam algumas provas. Coisa irracional, pois tivemos que ficar a manhã toda lá sem fazer nada. Aproveitei o tempo para conversar muito com uns colegas, estreitar amizades. Além da esquerda, o professor de Geografia e eu gostamos muito de samba. Uma manhã dedicada ao Adoniran, Geraldo Filme e Nelson Cavaquinho! A professora de Biologia também entrou em nossa pequena comuna e passamos uns minutos falando mal do nosso patrão. Capitalismos. Acabei revelando meus planos secretos quando disse que quero arrumar um emprego em que trabalhe menos e ganhe mais para me dedicar aos assuntos que realmente importam na existência humana: música, literatura e putaria. Risos e quase atravessamos a rua até o botequim da esquina. Quase.

Hoje estou romântico, coisa rara. Acho que a culpa disto, além do coração trouxa, foram uns filmes que andei assistindo. Teve também a conversa com um querido amigo que está começando a namorar, todo inseguro. Bem, o gostoso foi sentir que não perdi toda a sensibilidade, como lembrou a Rita, no telefone. E lembrei muito da única vez que ouvi um sussurrado “eu te amo”, o quanto aquilo foi forte e como fiquei feliz. Na época.

OK. Não vou muito além disto. Aprendi uns truques e, ainda, tenho que preparar aulas sobre Clístenes, Lênin e Joaquim José da Silva Xavier. E se sobrar um tempo, engatar no meu judeu Flávio Josefo.

Na verdade, se sobrar um tempo vou colocar um LP na vitrola. “À Flor da Pele”, com o Ney Matogrosso e Rafael Rabello. Sem mistérios, sem frescuras. Luz apagada, espalhado no colchão e água. Tem também uma poesia do Drummond que não sai da minha cabeça, mas sou tão pequenino e impotente que resolvi deixar o mineiro para outra noite.

A verdade, meus amigos, é simples. Ainda lembro. Por vezes com raiva, por vezes com tristeza, por vezes com carinho. Quase sempre com saudades. E fico irritado quando vejo que, realmente, nada é tão simples assim.

sexta-feira, março 25, 2005

Senseless

Se você não suporta risadinhas estúpidas, não devia ter entrado para o clube.
Ditado inglês

Feed on this flattery,
That absent Lovers one in th’other be.
John Donne


Noite passada, véspera de feriado, fiquei em casa preparando provas. Cinco provas de séries e conteúdos diferentes, realmente um trabalho grande. Quase três meses como professor, novamente. E descobri que não quero mais lecionar.

Terminei as provas. Estava escuro e fresco, uma e meia da madrugada, sem cerveja e nem beijo de namorada. Consegui, com uma tia, uma vitrola portátil, com plástico imitando madeira. A solução foi dada: peguei meus bolachões preferidos e taquei pra rodar! Maysa, Ira!, Chico e Elis Regina. Só Tatuagem tocou três vezes. Passou a noite.

Hoje teve reunião familiar. Fiquei boa parte da tarde com minha sobrinha, brincando com os cachorros e esquecendo de pensar na vida. Joelho no barro, beijo de chocolate e café. Sim, existem dias que consigo ser bom em alguma coisa. Hoje fui o melhor tio do mundo!

Corri até a locadora de vídeos e, mais uma vez, saí de lá sem escolher nada. Talvez vá ao cinema hoje, sozinho mesmo. Adoro cinema. Voltei caminhando, contente com as nuvens de chuva preguiçosas que me acompanhavam. Não vai chover, tampouco vai abrir o tempo. Gosto mesmo disto.

Agora pouco estava ouvindo uma coletânea que fiz do Bidê ou Balde e do Ludov. Que bandas bacanas! Todo dia escuto um pouco, canto muito e, na medida, encontro uma distração. Aproveitei o relax para tirar umas etiquetas de quatro camisetas (elas me irritam profundamente, raspando no meu pescoço). Serviço mal feito, mas hoje não estou muito dado aos detalhes.

As coisas não estão indo bem, eu sei. Paciência.

Não sei até quando esta estratégia de ficar ouvindo música vai continuar salvando minha integridade. Afinal, fora do meu quarto os sinais são evidentes. No café da tarde de hoje minha irmã disse que vai me apresentar uma amiga.

Será que está tão manifesto assim?

Fim de tarde e do feriado que lembra como um deus foi espancado até a morte. É estranho, né? Novamente a vitrola com Elis. Fico pensando no mestrado, no quanto estou atrasado com o conteúdo do cursinho e nos contornos do corpo de uma ex-namorada.

Aumento o som.

(Estudar francês, terminar a dissertação, vaginas, Ziggy Stardust, arsênico, preciso comprar um cinto novo, o que vou fazer hoje nesta noite?)

segunda-feira, março 21, 2005

América

Início de semana com os olhos no feriado. Não é muito bom trabalhar em um lugar que não lhe dá nenhum prazer além do pagamento. Se bem que o valor do meu salário não ajuda na empolgação também. De qualquer maneira, estou nessa só para pagar as contas e as cervejas do Domingo. Eu e a torcida do Flamengo...

O que tenho feito, sem mistérios, ainda é o mesmo. O mais do mesmo. Café agora é temperado com conhaque e cachaça, assim lá pelas seis da tarde estou levemente bêbado, rindo e relaxado com os papéis brancos e empoeirados, atacando minha rinite.

E a música, sim!

Consegui muitas novidades, quase todas elas da lavra eletrônica ou do jazz. Música boa pra trabalhar, sem lição moral, sem história de amor. Bom pra ficar cantarolando, assoviando, bem gostoso.

Ainda não terminei o texto da dissertação e estou atrasado. Dá nos nervos, entende? Daí eu chego na escola e só sei gargalhar olhando para meus alunos desinteressados na política de Robespierre ou no cisma das doze tribos de Israel. Ao menos ganhei a respeitável habilidade de devorar obras gerais sobre todos os assuntos listados pela nossa LDB, continuando na tradição bacharelesca do Visconde de Sabugosa.

E as mulheres? Tão bom beijar e deixar recados no celular. Conversando com uma grande amiga (irmã astral), entendemos uma singularidade da nossa espécie - o estudante de humanas que caiu na docência. Antes havia o rumo da esquerda (das esquerdas, melhor dizendo) e a gente encaixava tudo neste filão, desde tabus seculares até a cor do sofá da sala. Agora, com Alckmin, Serra e a decepção da tríade Palocci – Zé Dirceu – Genoíno temos a única certeza do sexo. Quase como um Gutierrez tupiniquim, chego a pensar que sobrou para esta curiosa espécie o estopim da música, da bebida de alto teor alcoólico e da mais genuína putaria.

O problema é que não estamos encontrando um cenário parecido com o do Bukowski ou Robert Crumb; nem mesmo um tipinho Clarah Averbuck estamos topando. É estranho, pois a vida fica restrita ao eterno “mais ou menos”, como a cerveja morna, a música muito alta e a transa mal feita. Tudo rápido, tempo de uma gozada, ir embora, entrar no metrô, banho quente e comida instantânea.

Todo dia, tudo sempre igual.

Além da libido escancarada, tenho lá meus momentos de carisma moralista. Faz tempo que não leio Nelson Rodrigues, mas amanhã decidi não começar Grécia com o primeiro colegial: vou falar de Confúcio e Sidarta. Não está na apostila, não aparece na FUVEST, mas eu estava precisando ler um pouco de literatura exótica. Nada melhor do que preparar uma aula para isto!

Teve também o francês me lembrando que “o Brasil brinca de ser nação”. Lembrou que o estado francês está assentado em Montesquieu, Rousseau, Sartre, Foucault... Filósofos.

Pois é. Tinha a Argélia na garganta, assim como o colaboracionismo francês, mas não pude ir muito além das sacudidas de cabeça. Latino-americano, aprendi a disfarçar usando paciência. Pode ser subserviência, conformismo, piedade ou simples omissão. Prefiro esquecer.

O certo é que estou tão confuso e mal-amado quanto este texto. Seria cool se eu escrevesse na Folha. Seria excêntrico se tivesse dinheiro e um passaporte carregado de vistos. Seria excitante se rolasse um funk de quinta, no AMP Galaxy. E como seria gostoso se meu time ganhasse o jogo!

Mas são outras coisas, nem tão ruins, bem tão boas. O eterno mais ou menos.

quarta-feira, março 16, 2005

A história da ex princesa

Sei que há contas a pagar
E há razões pra terminar
A semana toda ficou para trás
Ela tem trabalhado demais
(...)
E no seu apartamento
Ela se esquecia de tudo
Parecia uma princesa
Não se importava com o resto do mundo
E largava os pés em cima da mesa

Princesa
mauro motoki (ludov)



Tantos compromissos. Correria.

Cada vez mais me encontro em discussão íntima: é possível não gostar de pessoas? Gosto de almoçar sozinho, eis um bom começo. Nada de papo, nada de segredinhos. Insuportável.

Comprei o cd novo do Ludov. Rodou umas sete vezes, seguidas, comigo jogado no chão do quarto. Fiquei ouvindo as boas canções açucaradas e, novamente, desejei ser outro homem, outra memória, outro ofício, outra arma. Pela primeira vez em minha vida considerei, com o mínimo de seriedade, a hipótese de fugir. Fuga mesmo.

Pro fim do mundo!

Alguém vai lembrar de uma censura. Sempre foi assim daqui do outro lado. Tudo bem, já que estou acostumado em fazer figuração. Mas não no meu quartinho, não pros meus cds e nem nos meus planos de fuga. Aqui quem manda sou eu!

(De ganhar Nobel, orgasmo ou tradição. Aqui eu sou uma princesa!)

Se tivesse um pouco de decência, enchia a casa de flores, gelava cerveja e ficava olhando pra Lua, buscando estrelas. É isso que eu deveria fazer, junto com meus sonhos.

Mas quando os sonhos são gêmeos das saudades? O que a gente faz?

Joguei o relógio num canto escuro. Nem pensar em recolher os papéis amontoados, em esticar o lençol, em passar lavanda. Hoje eu não estou podendo com meu peso.

E nem com minha roupa...

E nem com minha história...

E nem com meu nariz...

E nem com este vazio.

domingo, março 06, 2005

A história do ex melhor amigo

Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.
História Natural
carlos drummond de andrade



Ele era meu melhor amigo. Companheiro.

Tudo que fazia eu amava da forma mais especial possível numa relação de amizade: com admiração!

Perfeito. A gente saia pra beber cerveja com o dinheiro contado. Gostávamos de conversar sobre cinema, política e de música. Mulher não, pois nossos gostos eram bem diferentes. Trocávamos cartas quando ainda não existia e-mail em nossos mundos. Continuamos com os envelopes depois da conexão: era pra ver as letras, sentir o papel.

Daí teve um dia que a gente brigou. Na verdade não teve um dia, e sim quase um ano que a gente procurou se magoar, mas sem ultrapassar o limite dos amigos de outrora, novíssimos conhecidos ou colegas. Agora sim, houve um dia que a gente brigou. E feio.

Não teve mais amizade.

Passou um bom tempo e nós não conseguimos mais conversar sobre cinema, política e música. Horrível quando isto acontece e você não sabe bem o que fazer com o batalhão de fotografias espalhadas pelo quarto, ou quando sua mãe pergunta porque ele nunca mais apareceu ou ligou.

- Não sei, mãe! Deve estar ocupado...

Na verdade, a gente sempre sabe. E estamos quase sempre ocupados.

Hoje estou um tanto confuso e solitário. Sinto falta de telefonar pra dizer que existem coisas que não estão indo bem, que estou cansado, muito atrapalhado e que gostaria de sair pra beber cerveja barata.

E falar de cinema.

sexta-feira, março 04, 2005

O intelectual dos Trópicos

No sé qué quiero pero sé lo que no quiero
Sé lo que no quiero
Y no lo puedo evitar
Puedo seguir escapando y aún lo estoy pensando
Lo estoy pensando pero estoy cansado de pensar

No sé lo que tengo
Pero sé lo que no tengo
Sé lo que no tengo
Porque no lo puedo comprar
Puedo seguir cantando
Pero sigo esperando
Sigo esperando pero estoy cansado de esperar
Todo lo demás
andrés calamaro

SENHOR, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chamma, que a vida em nós creou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem, - ou desgraça ou ancia -,
Com que a chamma do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
XII. PRECE
fernando pessoa

A cordialidade... a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro

Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra
Raízes do Brasil
sérgio buarque de holanda



Um batuque contínuo vazado entre as pessoas, roupas leves, chão molhado. Choveu no início da noite por pouco mais que uma hora. Refrescou, mas continua sem vento. Só uma brisa leve, vinda do continente que a gente avista fácil do pequeno Centro da Ilha.

O calçamento de pedras irregulares, a areia marinha, a chuva, maresia... Estou cansado e preocupado em não escorregar. Como se fosse possível encontrar um rosto conhecido no meio da folia, encosto num pedaço do mirante e fico procurando por ela. Encontro só os rostos coloridos dos brasileiros, rosas, marrons e amarelos, todos melados de suor com chuva. Assim, entrego todo o meu pudor da civilização sociológica e me rendo ao gigantesco sentimento de nossa barbárie.

Tão orgulhoso da batucada, do melaço, piscadelas e cerveja, tão solitário na multidão, inicio a subida da ladeira que dá na igreja. Lá mora São Sebastião com seu dorso nu, viril e belo. Tropical. Contorno a curva do hospital e entro na primeira ruela tranqüila que encontro, passando um casal aos beijos e um rapaz, quase na esquina, urinando numa pilha de sacos de lixo. Estou tão cansado.

Não consigo entender como posso estar tão bêbado já no início da madrugada. Será que o calor ajudou? Quando consigo sentar num lugar sem barro, seguro a cabeça com os braços, enrolando-a, tentando parar com a rotação da Terra. Não entendo a bebedeira, não entendo o samba, não entendo o forte cheiro de urina, não entendo a solidão. Não entendo nada.

É certo o título de civilização? “Pros diabos com minhas idéias de palanques”, mas não consigo deixar de pensar nisto. O que está se passando com este país moço, com estes rostos coloridos, com meu coração falido? Como pode um povo conhecer este samba triste, esta melancólica natureza, esta decadência sem antes não ter experimentado a antigüidade? Brasil subverte a ordem histórica orquestrada pelo deus hebreu e vive no esquema pecado – redenção, mas nunca consegue o perdão. Os cheiros inebriantes, as cores excitantes, o barro das ruas, meus pensamentos luxuriantes... Quanta bobagem! Quanta tristeza! Quanta saudade!

A derradeira toada: fico na saudade. De tudo, até do porvir, do país do futuro, das minhas causas-piada. Uma tremenda saudade das coisas que justificavam as minhas leituras, lamúrias, bilhetes e flertes. Saudade dos sonhos.

Com o coração doendo de tanta confusão quero começar a gritar; não consigo. Quero berrar bem alto, animalesco, sem medos ou culpas. Sair daquela rua torta, da noite abafada, da batucada ecoada. Gritar sem ter que pedir licença pra violência e sem vergonha do que faço, estudo e acredito.

(Do alto do morro da igreja, São Sebastião com o peito livre. Sons de trompetes. Gritos dos vendedores de cerveja.)

terça-feira, março 01, 2005

Clarissa

Te fiz um rock, Melissa
Pode crer que é sobre amor
(...)
Se não tiver como ir pra praia,
não precisa nem estalar os dedos.
Se tu quiser que eu te leve, eu aprendo a dirigir!

Melissa
bidê ou balde


Quantas e quantas vezes Clarissa. Todas elas, eu sempre lembro. Mulher morena, pequeno corpo, olhos escuros. Quantas vezes fiquei parado, olhando, sem saber o que fazer com o coração puro que estava do meu lado. E ela agia.

Clarissa foi muito mais, tanto que não consigo dizer, nem pensar, nem chorar, nem sorrir, nem escrever. Por ela eu só consigo sentir.

Coisas bonitas. Quando lembro dela funciona tal qual magia, como se eu abrisse a boca para voar borboletas, dias na praia, telefonemas de saudades e muito sorvete de flocos. Com ela eu conseguia ser homem bonito e simples, pequeno mais único. Era assim, sempre assim.

Nada ela fez de errado. Eu tive dúvidas e medo e insônia e raiva e pudor e culpa. A culpa nunca é sentimento nobre, diferente do arrependimento.

Pois hoje eu me arrependo de ter deixado Clarissa entrar naquele ônibus sem ter roubado mais um beijo sincero e, ali na Avenida Paulista, exorcizado todos os capetas.

Não deu.

Foi sem nunca me abandonar. A mulher generosa. Sabia que eu não estava pronto e, sabiamente, deixou muitas charadas em meu peito que não tive alternativa senão enfrentá-las. Foi indo com tempo correndo, barba crescendo, bola rolando. Aconteceu.

Aconteceram lembranças boas, doces momentos e deliciosos segredos. Aconteceu em nós dois.

E só.
(E eu aprendi a dirigir!)