AQUI ESTOU
As neves de Kilimanjaro
ernest hemingway
Não sei onde mora, nem o que faz. Não sei nada. Alguém me disse que se casou com um psiquiatra milionário, que vive na zona de Cape Cod, que engordou muito. Não sei. Caí em um estado depressivo que durou anos. Foi terrível e não quero lembrar aquele tempo : depressivo, furioso, raivoso, descontrolado, bêbado o dia inteiro, sem comida, sem dinheiro, claustrofóbico, com intenções suicidas, todos os dias trepava com uma negra diferente. Às vezes, pegava chatos. Procurava as mais vulgares e prosaicas do meu bairro. Gostava de bater nelas quando já estava dentro, e elas ficavam arrebatadas com o meu sadismo. Talvez isso tenha me salvado : as bebedeiras, as mulheres, soltar a fúria, mandar tudo à merda, não esperar nada de ninguém. E escrever. Nas madrugadas, bêbado, escrevia contos de tudo o que me acontecia. Era divertido. E continuei. E aqui estou.
O insaciável homem-aranha
pedro juan gutiérrez
Lá no Bexiga, bebendo pinga, pensei ter visto um ex-amor, de longe. Sei que ela está morando em São Paulo agora, e a cidade ficou pequena para sua lembrança.
Na verdade estou cansado, muito cansado.
Queria mesmo era beber todas as cachaças do Bexiga, beijar todas as putas, rir com todos os veados, chutar latão de lixo e calar a minha boca. Preciso, urgentemente, calar a minha boca! E em cada inferninho da Augusta, embalado no som do bolero, eu preciso refazer meu peito, desvelar meus olhos, sentir meu cheiro e entender um pouco do que se passa dentro da minha cabeça.
Minhas costas estão arrebentadas e um molar deu pra apontar uma dor aguda. Ainda hoje quero aparar minha barba e mudar um pouco o rosto do espelho, pois tenho vontade de urinar naquela imagem toda manhã. Também quero fechar todas as entradas de luz do meu quarto e me encerrar no escuro pra dormir um pouco, sonhando com mulheres peladas, ritmo de pandeiro e um milhão de sorrisos no rosto. Quem sabe um pouco de carinho.
Tenho dissimulado com tanta habilidade que chego a ficar pasmado. O irônico é que minhas idéias acerca de uma barbárie interior alheia acabam sempre batendo nos meus sentimentos, deixando claro que o selvagem da teoria sou eu.
Entreguei o calhamaço e suas cópias na universidade com um asco refinado. Mais um amontoado de papéis inúteis, reconhecidos por uma valorosa instituição, mas totalmente inúteis. Se eu não estivesse de ressaca passaria uma cantada sórdida na mocinha que despachava a papelada, mandando o sacerdócio dos intelectuais para o inferno. E ainda dizem que escrever ajuda a entender seus problemas e se situar no mundo. Devo ser mesmo uma besta, pois comigo funciona tudo errado, já que a cada dia estou mais perdido, solitário e confuso.
Já no terreno aberto, esperando ônibus, consegui me encostar num canto para respirar um pouco de ar fresco. Tinha uma azia riscando o ventre que estava me deixando maluco. Soltei uma baforada de ar, quase num suspiro estúpido, e voltei a pensar que sempre fui assim, que não poderia ser diferente. E resolvi voltar a escrever.
E continuei. E aqui estou.