segunda-feira, agosto 30, 2004

Punk Rosa

Ontem de manhã quando acordei
Olhei a vida e me espantei
E eu tenho mais de vinte anos
Eu tenho mais de mil perguntas sem respostas
Estou ligada num futuro blue.
Os meus pais nas minhas costas
As raízes na marquise.
Eu tenho mais de vinte muros
O sangue jorra pelos furos
Pelas veias de um jornal
Eu não te quero, eu te quero mal.
20 Anos Blue
sueli costa e vitor martins

Segunda cruel, ainda mais com o barulho repetitivo do despertador. Com alguma força consigo ligar a TV para assistir ao Bom Dia São Paulo. O mesmo desfile de desgraças matinais nas manchetes, café, xixi, gol do Corinthians. O jornal termina sempre com umas imagens de Sampa amanhecendo, o que me deixa com saudades. Afoguei tudo com um longo suspiro, pois não há tempo para melancolias: preciso trabalhar.

O excesso de café está me fazendo mal e fico vivendo “revoluções” na barriga por um bom tempo. Tento acalmar com água, acumulando em minha mesa muitas garrafinhas. Elas acabam disputando espaço com anotações e livros amassados. Mais café, mais água. No som, Miles solando, bem baixinho.

O reflexo no espelho está estranho: meus olhos estão inchados e úmidos, duas espinhas explodiram e meus cabelos insistem em me deixar. Com a barba por fazer e a grossa armação escura dos óculos consigo alcançar uma imagem próxima do Elvis Costello. Gosto disto.

Na manhã preguiçosa de Segunda tento me recompor. É inevitável, eu não consigo sentir diferente. Gostaria de ter feito outras escolhas, de ter viajado mais, trepado mais, estudado mais, pirado mais. Gostaria de saber se não desperdicei um tempo precioso de minha vida com pessoas erradas. Só me acalmo aceitando que pensar assim é loucura, pois não tenho como racionalizar meus passos perdidos. Foi, valeu, gozei. Sei que consegui cativar algumas almas, corromper poucas e detestar muitas. Nada muito valoroso, mas tudo muito humano, muito contraditório, muito imprudente. Gosto disto.

Volto ao cover do Costello no espelho e vibro. Naturalmente fiquei assim, naturalmente encontrei este lugar. Cada fio suicida, cada marca da acne, os olhos verdes, a barba ruiva, a armação escura dos óculos, parece que nasci assim, feito assim, geneticamente determinado assim. Talhado no exagero entre o bolero e o punk, a harpa paraguaia e a guitarra ácida. De uma imperfeição gigantesca.

Preciso de espaço e de uma idéia brilhante para seduzir um pouco da vida que meu coração bombeia. Está tudo muito difícil e não consigo traçar planos para além desta tarde. Quando sinto que vou desabar, corro para Pixinguinha. Até quando ele vai me salvar? Um rabisco aqui, uma anotação acolá. Por hoje chega de café! Meu esforço irá trazer um fruto bom, um novo tempo, um outro samba?

Observo as ranhuras na capa de um livro que repousa na mesa e lembro que estou com os prazos estourando. Tenho dois ou três pensamentos bons, procuro com os olhos umas fotos penduradas de amigos e começo a ler inspirado por uma vontade bonita de escrever um trabalho bacana. Um pouco de calma e água. Letras, letras, letras...

sexta-feira, agosto 27, 2004

Todo Sentimento

Jogo que voltava sempre
Eu sei
Pro primeiro fundamento
Eu voltei
Sou o grande perdedor
E ao amor
Me rendo
Perco o medo de perder
E de ganhar
Perdendo.
Primeiro Fundamento
zé miguel wisnik

Hoje eu não quero mais me machucar
Hoje eu não quero me perder
Hoje eu não deixo mais nada importar
A não ser você.
A não ser você.
marina lima e alvin l

Sinto falta de uma pessoa ao meu lado nesse ano de trabalho solitário. Conversar sobre algo que li, sobre a bomba no Iraque, o novo álbum da Zélia Duncan e a receita de bolo que descolei na TV. Sinto falta de me arrumar imaginado causar uma boa impressão, escolhendo a armação dos óculos, a cor do tênis e o cheiro da colônia. A barba aparada.

Quero me apaixonar novamente e voltar aos abraços que parecem encerrar todas as fragilidades do mundo, unindo os corpos, abraçando. Lembro de uma ex-namorada, jornalista. Ela gostava de ficar abraçada. Tinha um cheiro bom e uns olhos lindos. Aquilo foi importante em sua plenitude que, aparentemente, saciava todos os desejos.

Conheci uma mulher bacana e gostaria de passar uma tarde com ela. Eu quero simplesmente lhe dar um presente, um hoje, um segundo, um momento. O bom de se deixar seduzir é que as frustrações anteriores passam a não significar mais nada, como num toque mágico, transformando angústias em lembranças guardadas numa caixa em cima do armário. Liberdade para desejar, para seduzir, para saciar, para saborear, para temer, para gozar. Liberdade.

Não sei o que fazer e nem como fazer. Não quero pensar nela, mas penso. Não quero telefonar, mas tenho seu número na cabeça. Não quero gostar, mas gosto. E nestas situações eu fico me perguntando quem é que está no comando aqui dentro, quem é que define as curvas do caminho. Não sei e novamente fico confuso.

Consegui bons álbuns nesta última semana. Coisas lindas do Wisnik, da Marina, da Zélia Duncan, do Saint Germain e do Miles Davis. Assim sigo relaxando com meus livros, página por página. Arrumei um espaço gigantesco para o discurso amoroso, ainda mais depois de misturar Roland Barthes com Drummond. Abri a casa e deixei o vento varrer meu rosto, ascendi incenso, comprei sorvete e aparei a barba.

E amanhã quero cortar os cabelos.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Meus Bons Amigos

Dream sweet dreams for me
Dream sweet dreams for you
good night
lennon e mccartney

Ontem o pai de um grande amigo faleceu. Fui ao velório e enterro, gostaria de lhe demonstrar e ofertar alguma forma de carinho e atenção. Abracei forte meu amigo. O coração se apequenou. Queria fazer mais, muito mais, mas eu não conseguia fazer nada. Nada importava no momento.

E eu me senti estranhamente vivo.

Chegando em casa recebi um telefonema. Já era noite. Um outro grande amigo falava afoito do outro lado da linha. O processo de adoção que ele estava tentando, por mais de oito meses, finalmente terminou. Telefonou para me contar que ele e sua esposa estavam voltando para casa com uma criança de quatro meses. Eliza. Tudo registrado, papai e mamãe, vida começando.

E eu me senti estranhamente vivo.

terça-feira, agosto 24, 2004

A Civilização nos Trópicos

As pessoas que se enrolam nos jornais
não são mais notícia
Elas não esperam de um papel de duas cores
mais que um pouco de calor
A calçada não é pai. Não é mãe
Não é nada
Nada mais do que um abrigo, um refúgio
Tão estranho pra quem passa
Pra quem passa
jornais
thedy corrêa

Estou assustado com as ações violentas contra os moradores de rua no Centro de São Paulo. O preconceito parece mesmo ser o combustível destes atos absurdos e irracionais. Minha irritação aumenta mais quando me atento ao uso político que a Prefeitura e o Governo do Estado estão fazendo do caso.

Muito me enoja este comportamento yuppie que hoje domina todas as direções pela força de seu capital, numa barbárie interiorizada que coloca a vida como uma infindável competição entre desiguais. Tudo deve registrar um preço e os olhos que sentem esta agressão são repelidos com os nomes de idealistas, românticos, utópicos, exagerados, trágicos... Morte no Paraíso.

Conformismo e resistência. É exatamente em cima de uma tênue linha que separa (ou une) estes dois comportamentos que se escreve a História brasileira. Pessimista e desanimado, procuro força para levantar barricadas, fazer guerrilhas, cantar cirandas, compor rimas, gozar literatura e resistir ao medo.

sábado, agosto 21, 2004

Na penumbra

(Da célebre série “Curtindo um som de madrugada”)

Cansei de trabalhar. Acho que vou me dar este final de semana como um prêmio, fugindo de todas as preocupações, responsabilidades e tristezas. Uns dois dias ouvindo boa música sem pensar em nada. E só.

Ontem saí com dois amigos de fé e bebi muito. O bom da cerveja de trigo é que ela não me deixa com ressaca. O ruim da cerveja de trigo é que ela me deixa bêbado fácil. Um porre, finalmente!

Como sempre, falei muita merda.

Agora estou escutando Luiz Melodia na escuridão do meu quarto. Só a luz do monitor ilumina o ambiente, ficando tudo envolto numa deliciosa penumbra branca e fria. Estou sozinho em casa e aproveitei para cozinhar e abrir uma garrafa de vinho. Luiz Melodia, vinho, penumbra e quietude... Creio que mereço este presente nesta madrugada!

Fico repetindo a clássica gravação de “Pérola Negra”. Ela está marcada por uma linha de metais em brasa que contribui com uma cor deliciosa ao meu quartinho. Chego a sentir que até meus livros estão mais relaxados. Falta um charuto, uma cadeira um pouco mais confortável e uma dúzia de doces portugueses. Falta pouco para alcançar a felicidade nesta noite. E coloco para repetir a música com sua linha de metais:

Tente passar pelo o que estou passando
Tente apagar este teu novo engano
Tente me amar, pois estou te amando...
Baby, te amo, nem sei se te amo

Depois vou emendar com Chico Buarque. “Bye Bye Brasil / A última ficha caiu”. Gosto das noites, pois me sinto seguro, confortável e criativo. Um silêncio delicioso e desafiador. Hoje eu não quero dormir.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Estandarte curioso

Eu sou como um circo de lonas estragadas
Onde o palhaço já não faz mais rir
Onde o trapézio há muito está parado
porque o medo foi morar ali.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Em que a banda já não quer tocar
Onde as jaulas se restaram abertas
porque nem bicho se deixou ficar.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem ter mais público para aplaudir
Temendo aqueles que atiram facas
Temendo tudo que lhe quer ferir.
Eu sou como um circo de lonas estragadas
Sem alegria, sem emoção.
No entanto, existe aquela corda bamba
Onde balança o meu coração.
lonas estragadas
mabel velloso

Em belas conversas de botequins já falei, muitas vezes, sobre meu de desejo ir. Já escrevi muito sobre isto porque este tema e esta certeza estão sempre comigo, sejam nas noites na frente da TV ou nas longas caminhadas diárias. Eu sei que preciso mudar como uma estratégia de sobrevivência e, também, como forma de alimentar meu coração curioso.

Nesta semana aconteceu uma coisa engraçada. Muitas pessoas, diferentes e sem ligações entre si, me perguntaram exatamente a mesma coisa: mas você quer ir para onde? Confesso, sem nenhum pudor, que refleti bastante sobre isto, embalado por solos inspiradores do Miles Davis.

Não sei exatamente para onde ir, mas tenho algumas idéias, o que me deixa feliz e esperançoso. Gostaria mesmo é de morar num prédio de três andares na Vila Madalena, em São Paulo. Ele fica no cruzamento das ruas Purpurina com Harmonia, bem pertinho de uma padaria, de restaurante e de um boteco. Lá em frente passa um ônibus para a USP e o metrô não fica muito longe. É um lugar bacana! Eu quase morei lá, faltou pouco, pois a proprietária preferiu a oferta de um salão de beleza. Tem outro lugar, ainda na Vila. No começo da rua Fradique Coutinho eu encontrei um sobradinho bem preservado, no estilo das casas dos anos 40. O banheiro era antigo com uma banheira enorme e os ladrilhos verdes. Ficava perto de um restaurante mexicano (oba! Cerveja Sol e pimenta!). Não deu certo, já que não consegui cobrir a proposta de um estúdio fotográfico.

Penso que esta necessidade de sair está presa no meu interesse em conhecer novas pessoas e de sentir emoções desconhecidas, de ser surpreendido. Bem ou mal, em Sampa eu sempre estava em transito, trombando com muita gente, algumas delas interessantes. Gosto da vida que levo por aqui, mas sinto falta desta dinâmica que tanto me seduz. Ainda assim, entendo que no tempo que permanecer no exílio devo aproveitar para gozar de outras situações bacanas.

Hoje sai para caminhar com minha mãe. Andamos bastante, mais de uma hora. Ficamos a maior parte do tempo em silêncio, caminhando sem pressa e com as mãos dadas. Achei muito bonito. Na volta, depois da parada na sorveteria, ela começou a falar da saudade que sente do pai dela. Faz tempo que meu avô faleceu, eu era pequeno e lembro de poucas coisas, mas guardo o rosto e o comportamento doce dele na cabeça. Pensei no quanto estou ficando parecido com ele, com a mesma pela branca, os mesmos olhos claros, os cabelos ruivos rareando, o nariz grande, os óculos e, com este Sol, o chapéu. Ele usava um feito de feltro, eu uso um tipo “Panamá”. Mas ambos foram feitos pela indústria Prada! Não disse nada disto para mamãe, mas fiquei intimamente honrado e alegre por sentir que herdei algumas coisas dos meus antepassados. Meu avô era doce e chorava ouvindo música. Ele também gostava de macarronada e de dançar boleros. Além disto, minha mãe me contou que ele dizia brincando que gostaria de fugir com o circo.

Alguém, um dia, entrou num navio na Alemanha. Outra pessoa fez o mesmo na Itália. Sei que desceram no porto de Santos. E em algum momento desta “vinda” meu avô nasceu. E ele usava chapéu de feltro. E ele tinha os olhos claros. E ele era doce. E ele queria fugir com o circo.

E hoje carrego, com a mesma força de quem ostenta um belíssimo estandarte, o seu coração curioso.

segunda-feira, agosto 16, 2004

O Anti-Kitsch

Eu sou uma metralhadora em
estado de Graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto.
poema vertigem
roberto piva

Se digo “totalitário” é porque, nesse caso, tudo aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), e também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o sacrossanto “amai-vos e multiplicai-vos”.

Sob esse ponto de vista, aquilo a que chamamos “gulag” pode ser considerado como uma fossa sanitária em que o kitsch totalitário joga seus detritos.

a insustentável leveza do ser
milan kundera

Não entendo. Entendo, claro. Mas não entendo. Ou entendo e quero tornar as coisas mais fáceis e perdoáveis para mim mesma. Argh. Preciso é dar um jeito de arrumar o caos que eu sou.
máquina de pinball
clarah averbuck



Eu imaginava que voltando para Limeira teria mais equilíbrio mental para escrever os capítulos da dissertação. As coisas essenciais da vida estão mais práticas, pois não tenho que me preocupar em cozinhar, lavar roupa e visitar supermercado. Tenho tempo e conforto para trabalhar, com Internet, TV, passarinho, árvores, mato... Estou no interior do Estado! Imaginava e acreditava que em Limeira teria mais equilíbrio e saúde mental. Eu estava errado.

A solução já foi apontada por algum gênio: trabalho, música e literatura. Fico fechado neste trio, passando de um para outro, misturando, anotando, batucando... Uma esticada nas costas... Café... Saudade.

Faz tempo que não tomo um porre de declarar guerra civil. Meu corpo está estranhando a qualidade dos dias, com salada de alface, barra de cereal, suco natural e pencas de bananas. Nem um charuto, vodca, caldo de feijão ou sanduíche do Centro de São Paulo. Estou quase um hippie, quase um xamã. Mas permaneço atento, escondi minha coleção do Belchior e do Beto Guedes, aprendi a fritar calabresa com picles e alterno punk-rock, Abba, Nelson Cavaquinho com música tradicional judaica. Um esforço tremendo para não se acomodar e repousar nos louros da civilização.

Por vezes fico pensando nos erros que cometi e assim permaneço por um bom tempo, em silêncio. Não são reflexões fáceis e nunca consigo entender o que sinto. Francamente, sei que sou um homem bastante confuso. Por vezes desejo ser diferente, mas sei que não tenho muita escolha, acreditando ser uma ilusão pensar que minha vida poderia ser outra. A vida é uma só, não é mesmo? Sem rascunho, ensaio ou tentativa, a vida é só esta. O tempo precioso que estou gastando em escrever este texto e você em ler é único. Por isso pense bem se vale a pena passar os olhos por ele.

Gostaria que tudo fosse diferente e que eu voltasse a ter um milhão de amigos. Isto seria ótimo. Sinto saudades de muitas coisas, situações e pessoas, mas principalmente do tipo de homem que já fui. Carregava uma imensa vontade de tocar a bola, independente do perigo, e uma admiração sincera por gente real, que dava pra tocar e conversar. Era curioso e encantado, sempre com uma boa idéia para colocar em prática e muitos planos que nunca saiam da cabeça. Sinto muita saudade dos planos, já que eles me faziam olhar pra frente.

Nada poderia ser diferente. Estou de pé e continuo escrevendo, lendo e ouvindo muitas coisas. Coisas ruins, coisas boas, mas quero ser mais seletivo. Penso na falta da cidade e compreendo que me tornei uma assombração urbana no discurso que insisto em sustentar. Gostaria de uma segunda chance, mas isto não acontece na vida real, sem personagens de novela. E não posso voltar, tendo vontade de ir e ir e ir e ir e ir...

Tampouco consigo entender em qual estação devo saltar e se estou fazendo a coisa certa. Certamente eu nunca vou saber responder estas perguntas. Penso em cerveja de trigo e aparece um sorriso tímido no canto da boca. Acabou do cd do Miles Davis. Onde coloquei o da Cindy Lauper?

sexta-feira, agosto 13, 2004

Bye Bye Velho do Restelo

Eu tô grávida
Esperando um furacão
Um fio de cabelo
Uma bolha de sabão
E vou parir
Sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Vou dar a luz

grávida
marina lima e arnaldo antunes

Por obra do novíssimo acaso contemporâneo chamado orkut, encontrei um velho camarada com quem não conversava fazia anos. Ele colocou em sua pasta de fotos imagens de amigos que também perdi o contato, a intimidade e a cumplicidade. Imagens novas, deste ano. Assustei. Como todos envelheceram.

Na semana passada, andando pelas ruas do exílio, cruzei com uma amiga sincera que eu também não via há tempos, coisa de anos. Depois da confraternização e da alegria do encontro, travamos um diálogo mais próximo e nos entregamos aos fatos curiosos de nossa existência isolada. Ela contou muita coisa e fiquei constrangido por não conseguir falar muito, mas estava confortado de ter encontrado com ela naquela tarde. Com o privilégio dos antigos amigos, ela disparou sem pudores que eu estava muito mudado, que tinha envelhecido. Não fez isto por mal, notou os cabelos rareando, os óculos, a barriga e o olhar embaçado. Uma amiga sincera disparou e eu sorri.

Passei a semana toda escrevendo e lendo. Voltei a pegar um bom ritmo de trabalho e me divertir com Flávio Josefo, o que é uma boa notícia. Agora em Setembro minha bolsa de pesquisa acaba, tenho minha banca de Qualificação e um congresso na Unicamp. Tenho também que entregar um relatório acadêmico! Mas não estou afoito ou preocupado, pois estou confiante e seguro em minha profissão. É claro que ficar sem dinheiro e ter que trabalhar bastante não deixa ninguém contente ou relaxado, mas procuro acreditar que me encontro no final de um processo, no final de uma gestação. E sei que vou parir algo bacana pra mim!

Vou começar a dar umas aulas de Geopolítica em um cursinho aqui do exílio. Uma vez por semana. Pouquíssimo dinheiro e mais trabalho, mas estou feliz, pois sei que preciso dormir menos. Começo com a crise entre os Estados de Israel e da Palestina, aproveitando leituras do mestrado. Será bom retornar ao tablado das salas de aulas e reassumir minhas vestes cerimoniais de professor.

Com o tempo passando já não sinto tanta falta de muita gente por quem eu nutria admiração e que hoje evito. Sempre tive muito medo de ficar sozinho e de não conseguir conhecer novas pessoas, exatamente o estado engessado que mergulhei nos últimos meses. Só que hoje consigo sentir que permaneci na minha integridade, assentando minhas desilusões no meu próprio universo. E num espelho tremendo, eu que faço uma crítica aos estudos da alteridade como definidora da identidade, encontrei-me em mim, sem referencias externas, sem grandes traumas ou perdas. De fato consegui entender que sou o protagonista desta vida, gostando ou não disto. A idéia da gestação reaparece e namoro com ela: algo vai nascer das minhas intimidades com força para iluminar a cidade.

Com o tempo deixo o exílio, os grilhões, os fantasmas e a miséria dos sonhos. Já é tempo da cabeça fartar-se desta mesmice para deixar o Velho do Restelo, o copo de cicuta e a censura covarde. E cruzar o mar português, o galope do cavalo de São Jorge, a festa de um carnaval e a loucura excitante do golaço no Pacaembu.

domingo, agosto 08, 2004

Três pontinhos...

Hoje passei o dia todo com o coração sufocado e espremido. Fiquei boa parte do tempo confuso com uma pesada tristeza. Mergulhei no trabalho e escutei Zé Keti, Bidê ou Balde e Andrés Calamaro, meu argentino preferido. Nada ajudou muito.

Nesses dias não sei bem como fugir e quero ficar quieto esperando o tempo passar.

sexta-feira, agosto 06, 2004

O Vampiro que gostava de suco de tomate

Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
nelson rodrigues

É horrível sofrer com a insônia, ainda mais quando dormir se transformou no grande acontecimento do seu dia. Fechar os olhos e receber a cumplicidade do escuro me é confortável, delicioso, como vestir uma malha quentinha e macia. E conforme ensinou Milan Kundera, se alguém procura o infinito, basta fechar os olhos! A escuridão pura e violenta, sem limites, sem cercas, sem donos, sem nada. A escuridão hoje me é uma dádiva.

A insônia é horrível! Fico num paradoxo terrível, pois desejo a hora de me recolher no escuro para desligar todas as realidades, mas quando isto é feito a cabeça redobra sua atividade, almejando refletir todas as dores do corpo e da alma, chamando para si as responsabilidades da existência. E eu fico ali, perdido no escuro, com as idéias borbulhando. Um notável paradoxo: o sonolento que não consegue dormir!

Recentemente fui atraído por um comentário de uma amiga importante. Ela me chamava a atenção por desconfiar de outro notável paradoxo, pois como seria possível o trabalho de cientistas humanos que comportassem uma tremenda dificuldade de se relacionar com as pessoas? Indo fundo, minha amiga se questionava como é plausível que uma antropóloga não goste de gente. Realmente, como é isto pode acontecer?

Fico pensando. Será que por culpa de nosso instrumental teórico e prático na observação e reflexão, conseguindo alcançar uma visão contraditória e assustadora da humanidade, nós acabamos aceitando a distância como saída prudente? Enquanto historiador já me surpreendi várias vezes afirmando nossa falência enquanto um projeto viável, quase pateticamente berrando ao divino que somos uma absurda coletânea de enganos. Pessimista, não? Mas como me dizia um velho professor húngaro, “o otimista é um pessimista mal informado”. Pois bem.

Fiz uma força para lembrar de figuras parecidas e encontrei o vampiro doidão que odiava sangue, o padre marxista que terminou ateu e a prostituta que se apaixonava por todos os seus homens. Pessoas fortes ou ridículas?

Não consigo pensar pelos outros, pois já acho bastante confuso me entender. Sei que desde que comecei a registrar eventos na memória e construir algum tipo de simpatia e consciência, me atraía a vida difícil da contradição. Creio que é na confusão que as pedras rolam, as cabeças pendem e as luzes piscas. Sem romantismo ideológico, gosto dos canalhas, dos traidores, dos suicidas, das putas, dos loucos, dos malditos, dos violentados. Como historiador vejo neles a expressão de todas as contradições de suas sociedades comportadas por uma aguda moralidade e nobreza. É mais fácil decepar um rei do que roubar a alma de um humilhado.

No meu rincão, sou um historiador tão incoerente, contraditório e incompleto que estes precidados deveriam me afastar do que insisto em fazer. Mas não. São estas as forças que ainda me seduzem. Sim, porque graças a estes “defeitos” que consigo me sensibilizar e solidarizar com a imperfeita humanidade. Sou parte pulsante dela. Graças a estes defeitos imperdoáveis e exagerados que consigo seguir com força, mesmo sendo fraco.

Daí eu voltei ao texto da minha amiga antropóloga. E fiquei tão feliz com as coisas que ela consegue escrever, fiquei emocionado e alegre. Percebi que como uma generosa herdeira de Durkheim, Mauss e Lévi-Strauss, ela extraiu do meu discurso tudo o que há de mais elementar e essencial em minhas entranhas. Ela leu com atenção. E isto já me valeu o dia!

FLIP FLIP FLIP, no esconderijo do armário, cercada por portugueses do Canadá e negras militantes de Salvador: despertei agradecido por nossa incoerência!

(Mas tudo o que eu quero é dormir.)

quinta-feira, agosto 05, 2004

Lost in Translation

Silenciosamente voam os pássaros
Inteiramente através de nós. Eu que quero crescer
Olho para fora, e é em mim que a árvore cresce.
rainer-maria rilke


Tinha preparado um texto complicado e cansativo. Queria dizer coisas simples, mas acabei me atrapalhando bastante. Vou tentar fazer isto de uma forma mais natural, mais crua, despida e violenta.

Estou terminando minha pesquisa. Faz tanto tempo que estou encerrado neste tema... acho que desde 1999! Em dezembro defendo minha dissertação e recebo um título. Vou dedicar e oferecer cada linha aos meus pais, parceiros e protetores que sempre me aliviaram de preocupações, apoiando meu trabalho mesmo sem entender realmente o que faço. Só por conseguir dar este prêmio para os dois já fico muito emocionado e feliz. Bom, estou terminando um estudo longo que me transformou em outra pessoa, assim como também modificou minha forma de ver o mundo, processo cansativo e desgastante. O resultado final não está bom e sei que poderia ter feito algo melhor. Escrevo mal, leio mal e falo mal, apesar do esforço.

A grande contribuição que este trabalho me deixou é muito simples e óbvia, mas eu a considero bastante importante e reflexiva. Aprendi e entendi que estou definitivamente sozinho, independente das situações. Não é nada de original, eu sei. Já em 1997, mudando para São Paulo, comecei a desconfiar daquela aglomerada solidão, incomodado como aquilo era possível. De lá para cá aconteceram muitos encontros e desencontros, coisas incríveis, tristes e loucas. Amadureci nas cacetadas, apreendendo mais a realidade, o corpo e a cabeça. De fato estou sozinho e não estou pensando no amor romântico ou na amizade saborosa, quero ir mais além, forçando até onde agüentar a consciência.

Esta idéia de solidão única e pessoal pode apavorar, aprisionar ou descortinar uma nova visão das coisas. No momento esta certeza me coloca um certo conforto, pois dá um parâmetro, e estou mais leve em relação aos compromissos para com o mundo e com as pessoas. Talvez não me importe tanto com o que os outros pensam das minhas idéias. Talvez reconheça mais a dimensão das minhas limitações. Talvez eu tenha desacreditado todas as ilusões, me esquecendo de sonhar. O certo é que prefiro permanecer nesta posição relativa, sem afirmar nada que não seja sombra da solidão.

Acredito que este é um dos motivos que me desencoraja escrever sobre os outros. Penso que os sentimentos alheios são tão confusos e traiçoeiros... Não quero assumir novas responsabilidades. Tenho é vontade de escrever e pensar sobre meus passos, minha cabeça, minhas idéias pequeninas. Se alimento uma percepção egoísta não desejo refletir, mas sei que esta investigação íntima me é necessária. Quem sabe descubro um cara bacana?

Os quatro pontos cardeais aparentemente sumiram. Tenho muito sono, mas tenho dormido pouco. Olho minha estante colorida pelas capas dos livros e me sinto bem, desafiado por tantos autores que ainda podem ser meus. Ouço com atenção música psicodélica, Geraldo Filme e Mozart. Tudo muito gostoso. No fundo sei que não estou feliz e que falta pouco para eu esmorecer e desabar, mas gosto de lembrar da força que me orienta. E tomo banhos demorados. E canto um samba do Adoniran. E tranco todas as portas da casa. E preparo panquecas doces.

Segue a vida.