sexta-feira, outubro 29, 2004

As Cidades

outrora eu era de aqui
e hoje regresso estrangeiro
forasteiro do que vejo e ouço
velho de mim
já vi tudo
ainda o que eu nunca vi
e o que nunca verei
eu reinei no que nunca fui
fernando pessoa
Estranho sentir este sentimento de desterro, de vagar, uma pulsação por nenhum lugar, sem reconhecer planaltos, montes, cursos de rios, ruas tortas ou mesa de bares. A cidade não mora mais em mim.

Pedi para minha amiga mineira, que quando foi criança se vestia de anjo nas profissões de rua, para não se esquecer da cor de meus olhos, dos embaraçados cabelos e da rouquidão da minha voz. Pedi para minha amiga mineira, numa dessas conversas de cozinha, não esquecer de mim.

Teve também a jornalista dos olhos amêndoas, seios perfeitos (nem pequenos, nem grandes), idéias fortes e enorme coragem. Nunca a vi chorando, sempre disposta e indignada, querendo derrubar os muros do condomínio ou as guaritas das ruas. Mas sempre havia um tempo para cafuné, corpos despidos de vergonhas e um copo de rum. Ela foi e eu voltei. Pra ela pedi quase nada: perdão. Desejei muita sorte.

O gênio da inteligência raivosa chegava sempre no início da tarde e eu me deixava levar pela conversa. Passavam horas, talvez noites, e nossa conversa prosseguia, sempre desmistificando, debatendo, ruindo. Na maior parte do tempo era o dominó ou o futebol na televisão, leite com biscoitos, sofá velho e Elis Regina. E quando fiquei bem pequenino, com muito medo de morrer, o gênio da inteligência raivosa tocou meu ombro, desceu da ironia e permaneceu ali acalentando minha tranqüilidade e reforçando meu humor. Ao gênio pedi compreensão.

O intelectual carioca se assustava com tanta cerveja que a gente bebia em nossos encontros. Vila Madalena ou Arcos da Lapa – sempre um cenário especial para este grande encontro. Ele é o pensador dos trópicos com sua pele morena, sua formalidade sedutora e roupas claras, cremes, cruas. Ignorava a formalidade acadêmica por conhecer muito mais do que todo o departamento. E a gente ria, bêbados, da bunda de alguma menina, de uma letra do Cartola ou do avanço petista no Brasil. Lembro só que pedi mais uma dose.

Há tempo ainda para lembrar do balão azul, da terra do figo, da capela do Brasil colônia, do Mercado Central e do fabuloso destino da Amélie. Ilusões combalidas, mas não perdidas. O estranho é que tudo isto hoje parece ficção, escreve ficção, lê ficção.

E minha história se transformou em uma ficção.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Um horizonte de cidades bombardeadas

Estou arrebentado, cansado mesmo. E chega de trabalho por hoje!

Descolei uma caixa do Heitor Villa-Lobos e contraí novo vício. É escutar para sentir uma deliciosa melancolia.

E por recomendação de uma doce amiga, encontrei um poeta português contemporâneo chamado Eugénio de Andrade. Gostei muito do que consegui ler até agora.

Não estou inspirado e nem incomodado demais para escrever. Quero mesmo é ouvir Villa e ler Andrade. E queria fazer isto com duas pessoas especiais.

Agora faço, só.



As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.


Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.


E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.


As palavras que te envio são interditas
eugénio de andrade

segunda-feira, outubro 25, 2004

Cego do castelo

Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse: pegou no chapéu, na bengala e atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo Coração dos Outros.
- Cedo, hein major?
- É verdade.
E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo avançou algumas palavras:
- O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito forte.
- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
- É bom pensar, sonhar consola.
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens...

Triste Fim de Policarpo Quaresma
afonso henriques de lima barreto



Talvez seja exagero meu ou o pulsar da veia trágica, como adoram apontar. Talvez seja uma centelha do divino, para os místicos, como se o sétimo selo estivesse rompido em nosso cotidiano, inflamando esperanças, medos, tristezas. Talvez seja, ainda, uma doença tropical, espécie de banzo, de exílio, de malária, de partida. Ressaca do paraíso.

Não sei dizer o que é, não consigo denominar tanta força e me colocar ao seu lado, numa meditação ou reflexão. O mistério que me move e paralisa é gigantesco e não opera com lógica cartesiana. Nem mesmo sei se tem alguma lógica.

Passei o Domingo mergulhado em grande introspecção, encerrado em mim buscando compreensão, sentido, caminho. Nada aconteceu, nada foi em vão.

Não consigo aceitar com naturalidade esta competição diária e a autoridade nos sentimentos. Uma mania estranha que alguns homens cultivam em julgar amar melhor que outros, cultivar uma amizade mais perfeita e de ser uma pessoa melhor acabada. Sempre assim, forçando uma hierarquização das coisas do coração que, simplesmente, existem para combater este tipo de vício.

O que, de fato, passei a entender é que agora só posso contar comigo, que sou minha referência, tesouro, culpa, pecado e redenção. Meu grão de loucura, minha saudade, o eterno porvir, o inadaptável. E se ainda não sei o que fazer, pois não consigo conhecer nada, entendo que será desta íntima guerra civil que brotarão novidades, perfumes e promessas de paz.

Assim, não prospero nas ladainhas fáceis da esperança ou do otimismo; estou arrancando cada espinho sozinho, fechando os cortes, limpando a sujeira. Sobrevivendo, o que já é uma grande aventura.

Falta amar, falta emprego, falta orgulho, falta escrita, falta inspiração, falta sedição. Que nunca faltem os sonhos.

PS: Sábado assisti um show do Nando Reis. Ele cantou Não Vou Me Adaptar e gostei de imaginar que aquela era pra mim.

(E era.)

sexta-feira, outubro 22, 2004

Vete de mi

Recebi seu cartão-postal no final da tarde, quando tinha acabado de me esticar na cadeira para ler. Vi o carteiro empurrando um amontoado de papéis na pequena caixa e tive vontade de ir até lá, falar alguma banalidade, oferecer água. Tolices. Apenas fiquei olhando e como ele não notou minha presença, permaneci alguns minutos jogado na cadeira. Gosto de imaginar que vou receber uma grande notícia perdida entre os envelopes pardos, as propagandas de produtos, burocracias bancárias e cobranças mensais. Raramente volto com um sorriso após verificar a correspondência. Hoje eu voltei confuso.

Não li de imediato, deveria prolongar aquele momento de exceção em meu cotidiano frio. Coloquei um cd do Rubén González no aparelho para quebrar o silêncio opressivo que se instalou na chácara. Nosso interior é dotado de uma parcimônia gigantesca onde tudo dorme, resmunga e se arrasta. Eu mesmo vivia inerte numa sonolência que me impedia de sonhar ou me revoltar, qualquer ação que rasgasse o sossego. Então chegou seu cartão-postal.

Na cozinha lembrei que o pó de café tinha acabado, o que me obrigou a procurar algum chá escondido no armário. Encontrei chá verde e camomila, coloquei água para ferver numa chaleira amassada e finalmente tomei fôlego para encarar a lembrança. Uma nostálgica foto do Lago do Guaíba informava onde você estava, exatamente no mesmo momento em que Ibrahim Ferrer começava a cantar Silencio. E a combinação daquela foto das águas gaúchas com a melancólica música atordoou meus sentidos, marejou os olhos e me forçou dois longos suspiros. Voltei a pensar em tudo que estava acontecendo nos últimos três anos e senti uma pesada fadiga, não apenas física, mas moral. Achava que na pasmaceira do pequeno sítio conseguiria descansar e não mais pensar, não mais ler, não mais sentir saudades, não mais amar. Queria apenas viver, materialmente viver.

Corri os olhos até a porta dos fundos e tomei o caminho que levava ao pequeno ribeirão. Suas águas amendoadas lambiam um alto barranco que me servia de encosto para pescarias. Observava as águas passando com seus pequenos ruídos escorrendo, o vento dançando na copa da velha mangueira e o zunir de um bambuzal enorme. Tudo passando, humildemente passando.

Minhas mãos brancas, frias e estremecidas meteram, vagarosamente, o postal nas águas do ribeirão. Fixei os olhos no pequeno objeto até ele se perder em todos os humildes ruídos, atravessando as margens, as correntezas, os seixos, águas, ondas e turbilhões. Subi o barranco, desliguei o som e preparei o chá. Eu realmente estava exausto.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Barro, pedra, pó

Libertas Quae Sera Tamen

A novidade é que, finalmente, arrumei um álbum do Milton Nascimento que adoro. GERAES foi gravado em 1976, no Brasil dos militares, da saudade e do exílio. Sem se afundar em tanto sentimento cinza, o trabalho do Milton (que naquela época ainda usava um boné) é belíssimo, da primeira canção até a última!

O álbum é maravilhoso! A voz do Milton está linda. A da Mercedes e da Clementina também, assim como as letras do Chico Buarque, os violões, as cordas, os pianos... Tudo sensível, frágil, belo...

A capa é tão simples e profunda quanto o nome do trabalho: um fundo bege com um trenzinho desenhado entre uns morros. O mar de morros de Minas Gerais.

A primeira vez que escutei o disco foi num antigo apartamento que dividia com amigos, em 1999. A namorada de um deles que tinha o tesouro deixou, desavisada, o LP em nossa coleção. Descobri o bendito perdido entre punk brasileiro, Nelson Cavaquinho e Raul Seixas. Decorei todas as faixas.

Ontem encontrei o álbum e cá estou com ele até agora.

Sem palavras... Apenas som!

Lo que puede el sentimiento
No lo ha podido el saber
Ni el mas claro proceder
Ni el mas ancho pensamiento
Todo lo cambia el momento
Cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente
De rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia
Nos vuelve tan inocentes
Volver a los 17
violeta parra

Melancólico mistério

Com a corda MI
Do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela
Prova de carinho
Quantas serenatas eu tenho que perder
Pois o meu cavaquinho já não pode mais gemer
Quanto sacrifício eu tive que fazer
Para dar a prova pra ela do meu bem querer
Prova de Carinho
adoniran barbosa e hervê cordovil
Troquei as cordas, agora prateadas e novas. Limpei e afinei o cavaquinho, com muito cuidado, com muito carinho. Estou encantado por começar a tomar aulas do instrumento, feliz por finalmente tomar coragem para cruzar a fronteira entre o bom apreciador de Cartola e Adoniran Barbosa e se transformar num amante, parceiro e crente no mistério do samba.

Terça passada foi no parque do Taquaral, em Campinas. Tarde de feriado, meu amigo Marcus e eu resolvemos assassinar o tédio esvaziando algumas garrafas e cantando Geraldo Filme. Ali mesmo, numa mesa do parque, nos entendemos com o cavaquinho e o pandeiro, sem presa, sem medo, sem tristeza. Cantei Nelson, Paulinho e Vanzolini sentindo o gosto de cada verso, saborosos, e marcando a ponta dos dedos nas cordas de aço. Novos calos. Velhas cicatrizes.

Por algumas noites voltei a sonhar com coisas boas, pequenos desejos de projetos futuros. Queria sonhar uma roda de samba embalada na cerveja, no queijo escolhido no Mercado, cachaça de Minas e um mutirão para aprontar a macarronada. E, de repente, nada mais fez lógica, prece, necessidade ou abandono.
Só o melancólico mistério do Samba.

domingo, outubro 17, 2004

Paisagem lunar

Quero, terei -
senão aqui,
noutro lugar que ainda não sei,
nada perdi
tudo serei.
fernando pessoa
Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta e não voltar nunca mais
Desculpe a paz que lhe roubei e o futuro esperado que não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo
Não quero ficar dando adeus às coisas passando
Eu quero é passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo
Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos...

Movimento dos Barcos
jards macalé e capinam
Não há poesia, não há choro, nem saudade. Chove muito, céu cor de chumbo, frio e esforço apenas para respirar. Poderia ser qualquer dia da semana, do mês, do ano ou século que seria a mesma situação, o mesmo sentimento de abandono. E Deus revela a sua mesquinhez em fabricar estes dias iguais.

Não estou saciado e nem faminto, estou arrebentado. Arrebentado, avassalado, vilipendiado, rompido, invadido e exilado. A repetição das idéias não é culpa minha, nem da mesquinhez divina. Não há nem culpa. É terra arrasada, inerte, infértil, inapta. Pior que paisagem lunar.

Não vou apertar o gatilho, dobrar os sinos ou declamar poesias: chove muito e o céu cor de chumbo pede movimentos comedidos. Só que não consigo abandonar minha incredulidade em observar tanta violência, tanta traição. É estranho, mas será que só eu vejo, só eu sinto, só eu reclamo destas violações cotidianas? Houve um tempo de grandes amigos que hoje não conseguem cruzar olhares. Não consigo me conformar, penso que estamos, diariamente, assinando nosso atestado de falência humana.

Não devo viver assim.

E agora estou nu em frente do espelho. E o que me resta são as cicatrizes ganhadas com a existência. Sobrevivendo tão somente, aguardando, esperando, na tocaia, em gestação. Nada foi em vão, repito sempre para não me esquecer. Nada foi em vão!

quinta-feira, outubro 14, 2004

A vertigem no paraíso

Coroai-me de rosas,
coroai-me em verdades de rosas
rosas que se apagam
em fronte a apagar-se tão cedo!
Coroai-me de rosas e de folhas breves.
E basta.
Coroai-me de rosas!
fernando pessoa


Sou pouco mais que um bando de sonhos vencidos, que um coração falido e uma dúzia de boas recordações. Assusto-me em pensar que o tempo marcou minha face com sua espátula trêmula e com seus olhos cinzas, acabando por me tornar um produto não só do que fui, mas principalmente do que não consegui ser.

Nunca fui um bom amante, embora tenha carregado algumas paixões doces. Lembro que era tão fácil, tão simples e tão delicioso viver assim, como quando, em nossa infância, vamos passar uma tarde na praia ou num parque de diversões. Nada é mais importante do que estar ali, presente, vivendo sem pensar, sem ponderar, sem preocupar. E na vertigem do loop da montanha-russa eu esquecia dos pés fincados no chão e deixava-me voar, mesmo com medo, e corava o rosto, dilatava as veias, arrepiava os pêlos e gritava sem dizer nada além de emoção. Pura emoção. Vivi amor assim, com loop, vertigem, arrepio e dilatações. Restou o verbo conjugado no passado.

Tampouco fui um bom jogador de futebol, um bom crooner, aluno de Matemática, budista, estudante do grego, leitor de Saramago, motorista, sedutor, cronista, e militante de esquerda. E hoje penso nisto sem conseguir identificar muita coisa, escolha ou vergonha, opção ou frustração. Não sei bem o que deixei o tempo fazer comigo, não sei bem quem sou, quem escrevo, quem leio. Não sei dos meus sentidos, da minha saudade e dos meus carinhos. E novamente torno-me um fantasma de si mesmo, sem referências e consistência.

Mas quando posso volto ao parque, ao loop, ao mergulho da vertigem, turbilhão e aquarelas. Volto ao exato momento em que me deixei e abraço meu corpo, observando a beleza dos meus olhos, a cor dos meus cabelos e a serenidade que eu portava na respiração. Acabo com tanta saudade, com tanta renuncia e com este absurdo de apartar-me de mim, tornando a ter nome, história e descanso.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Décadence no paraíso

Mi unicornio azul
Ayer se me perdió
Y puede parecer
Acaso una obsesión
Pero no tengo más
Que un unicornio azul
Y aunque tuviera dos
Yo sólo quiero aquel
Cualquier información
La pagaré
Mi unicornio azul
Se me ha perdido ayer
Se fue
Unicornio
silvio rodrigues
(Da célebre série "Foi a Noite")
Samba decadente, marcado apenas pelo mugir do surdo, estalando seu couro seco esticado pelas tarraxas prateadas. Marcação forte, no ritmo, mas o samba é decadente assim mesmo, é interior, é vontade de chorar, é quarta-feira de Cinzas.

Tem horas que eu fecho os olhos e me assusto com a escuridão. Acabou-se o samba, a brisa, o luar do sertão, a aguardente de cana do Ceará. Nem exílio, nem jornada, poder ou migração. Tudo o que tento fazer ou dizer só revela o quanto estou distante de mim, o quanto me perdi, me traí, me esqueci. Tanto que não sei mais como voltar.

(E o batuque segue ritmado, mas decadente. O samba foi embora e agora o que temos é uma espécie de transe, de catarse que paralisa e congela. Ninguém canta, dança ou pensa: é só ritmo!)

Fui atingido por uma barbárie gigantesca e assustadora. A cada dia me transformo mais em uma espécie de animal tropical, balbuciando as frases e esquecendo como se chora. Uma brutalidade nos toques, falta de libido e muito sono. Moralmente falido e sem a menor preocupação com alguma coerência discursiva. Acabou-se o tempo que ainda insiste em passar.

É impossível continuar assim. Dou-me conta que não lembro de mais nenhum número de telefone, que esqueci de todos os rostos familiares e que não sei mais assobiar nenhuma canção. Dou-me conta que fui devorado pela ignorância e pelo medo, fugindo os sonhos e as cores, promessas e desejos, sedução e compaixão. Furtei-me de meu próprio corpo preferindo não ser notado pelas mulheres, pelos homens, crianças, jovens e santos.

Apenas sei que minha cabeça vai desabar nalgum canto e que vou, novamente, esquecer de mim. Vou dormir com a volúpia de uma grande conquista, rendendo minha insegurança e meu fracasso. Vou dormir e libertar dos grilhões um animal lascivo que rosna afinado, mastiga flores e exala seu gozo como um cão no cio. Vou dormir e esquentar uma felicidade estranha ao mundo capaz de redimir toda a minha bestial figura, tocando as retinas, o ventre, os pêlos, as dores e os momentos em que eu desejo esquecer.

Depois vou acordar e a marcação do surdo vai exigir que eu me levante. Aí, quem sabe, eu sambo.