As Cidades
Pedi para minha amiga mineira, que quando foi criança se vestia de anjo nas profissões de rua, para não se esquecer da cor de meus olhos, dos embaraçados cabelos e da rouquidão da minha voz. Pedi para minha amiga mineira, numa dessas conversas de cozinha, não esquecer de mim.
Teve também a jornalista dos olhos amêndoas, seios perfeitos (nem pequenos, nem grandes), idéias fortes e enorme coragem. Nunca a vi chorando, sempre disposta e indignada, querendo derrubar os muros do condomínio ou as guaritas das ruas. Mas sempre havia um tempo para cafuné, corpos despidos de vergonhas e um copo de rum. Ela foi e eu voltei. Pra ela pedi quase nada: perdão. Desejei muita sorte.
O gênio da inteligência raivosa chegava sempre no início da tarde e eu me deixava levar pela conversa. Passavam horas, talvez noites, e nossa conversa prosseguia, sempre desmistificando, debatendo, ruindo. Na maior parte do tempo era o dominó ou o futebol na televisão, leite com biscoitos, sofá velho e Elis Regina. E quando fiquei bem pequenino, com muito medo de morrer, o gênio da inteligência raivosa tocou meu ombro, desceu da ironia e permaneceu ali acalentando minha tranqüilidade e reforçando meu humor. Ao gênio pedi compreensão.
O intelectual carioca se assustava com tanta cerveja que a gente bebia em nossos encontros. Vila Madalena ou Arcos da Lapa – sempre um cenário especial para este grande encontro. Ele é o pensador dos trópicos com sua pele morena, sua formalidade sedutora e roupas claras, cremes, cruas. Ignorava a formalidade acadêmica por conhecer muito mais do que todo o departamento. E a gente ria, bêbados, da bunda de alguma menina, de uma letra do Cartola ou do avanço petista no Brasil. Lembro só que pedi mais uma dose.
Há tempo ainda para lembrar do balão azul, da terra do figo, da capela do Brasil colônia, do Mercado Central e do fabuloso destino da Amélie. Ilusões combalidas, mas não perdidas. O estranho é que tudo isto hoje parece ficção, escreve ficção, lê ficção.
E minha história se transformou em uma ficção.